Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

NYT encena a si mesmo

O curioso documentário de Andrew Rossi, Page One, Inside the New York Times, é um filme sem final. E não poderia ser de outra forma. Não sabemos qual será o fim do Times, esse venerável ícone do jornalismo americano, às voltas com dificuldades financeiras, nem da “imprensa à maneira antiga”, da profissão de jornalista ou da nossa república moribunda. Tudo indica que não acabará. Mas, mesmo que você considere Page One uma crônica do Último Voo do Nobre Pterodáctilo, o documentário está cheio de trechos suculentos para jornalistas, para os que odeiam jornalistas e para os viciados em notícias.

Inicialmente, a decisão de Rossi de documentar a vida na editoria de mídia do Times ameaça tornar-se um daqueles circuitos fechados voltados para o próprio umbigo: um filme sobre repórteres que escrevem sobre imprensa. Mas o calejado repórter de fatos cotidianos, David Carr, contribui para um foco natural, porque ele mesmo é um personagem interessante e porque personifica a integridade que o Times defende. Carr compareceu ao lançamento do documentário em Nova York para pregar em defesa do jornal. “Fornecemos informações eficazes e em tempo oportuno nas quais o mundo pode confiar”, disse ele, em tom de ameaça, num auditório lotado de funcionários do Times. “Para que isso seja possível é preciso que haja uma empresa como essa.”

Bem… Considerando-se a longa história do Times como escriba da política externa, da burocracia militar e dos serviços de informação dos EUA, e sua fragilidade em assuntos culturais, depende do que se entende por “eficazes” e “tempo oportuno”. E também “confiar” e “o mundo”. Mas deixemos claro que, no conjunto da história do Times, o resumo de Carr tende a ser mais preciso que o contrário. Em todo caso, Page One demonstra que 2009 e 2010 foram tempos interessantes para a editoria de mídia, levada a cobrir uma história que se revelou um abismo cada vez maior – o colapso de dimensão nacional dos jornais americanos.

Armagedon cívico

No lançamento, Carr também se referiu com sarcasmo à dificuldade de se filmar uma atividade solitária e sedentária. “Observando a redação, todas aquelas pessoas sentadas em suas divisórias, digitando, com fones de ouvido, pensei: ‘Será que isso dá filme?’”

Mas Rossi fez um trabalho muito bom, tornando o documentário dinâmico, levando-nos às reuniões de pauta da lendária Primeira Página (das quais participam os chefes das principais editorias) e explorando os diferentes estilos de trabalho de Carr, repórter da velha escola acostumado a gastar a sola atrás da notícia, e do blogueiro Brian Stelter, seu sempre conectado e tuiteiro colega.

No filme, Rossi mostra Carr e seu editor, Bruce Headlam, discutindo a maior matéria da editoria de mídia, um artigo de 5 mil palavras sobre a má administração e a cultura abusiva que levou à falência a Tribune Company – proprietária do Los Angeles Times, do Chicago Tribune e de vários outros jornais. Foi um trabalho que exigiu várias semanas entre reportagens, redação, edição, dupla checagem dos dados e preparo para publicação. É duvidoso que qualquer outro jornal (ou publicação da internet) conseguisse chegar à metade da qualidade do material.

Esse último fato aponta os múltiplos aspectos do atual dilema do jornalismo. O isolamento quase total do Times, que hoje não tem concorrentes americanos do seu porte ou com a mesma ambição de oferecer cobertura global, pode parecer arrogância. O próprio Carr usa a frase “o caráter excepcional do New York Times”, referindo-se à convicção quase religiosa de que o jornal seja demasiadamente importante para o futuro da democracia, ou do que quer que seja, para falir. Por outro lado, os tecnoutopistas que não se cansam de enfatizar os passos em falso do Times, e ingenuamente pressupõem que algum tipo indefinível de jornalismo cidadão preencherá o vazio que ele deixará se entrar em colapso, podem convidar para um Armagedon cívico, em que políticos, lobistas e corporações fazem o que querem, enquanto o resto da humanidade observa o site TMZ e a rede Gawker. Não critico essas publicações, que não inventaram o conceito de dar ao público o que ele quer. Mas mesmo os fabricantes do chocolate Snickers não acreditam que as plantações de aspargos devam ser queimadas.

Dama Cinzenta

Se o Times parece vigoroso, não se sai tão bem quando reage às revelações do WikiLeaks. Esses acontecimentos geram angústia nos bastidores do jornal no afã de entender se Assange é um jornalista legítimo e de como definir suas problemáticas relações com o Times. A chefe da editoria de internacional, Susan Chira, talvez sem perceber que cria um problema para si mesma, admite que nunca ouviu falar do WikiLeaks antes dos primeiros vazamentos do vídeo sobre a guerra no Afeganistão (embora o Times o tivesse noticiado várias vezes), e depois insiste que o WikiLeaks é apenas uma fonte, e não um parceiro (contradizendo diretamente seu superior, o editor executivo Bill Keller). Talvez essa seja uma simplificação excessiva de uma situação que muda rapidamente, mas depois de ver o filme concluímos que o Times continua se sentindo mais confortável, como instituição, em situações em que as distinções convencionais entre repórter, fonte, assunto e público ainda se mantêm.

A bem da verdade, realmente não sei quantas pessoas estarão interessadas em Page One, ou no que verão no filme. Em geral, acho o fenômeno de jornalistas debatendo o futuro do jornalismo muito tedioso, mas também fui um jornalista de Nova York durante 16 anos, conheci Carr e muitas outras pessoas que aparecem no filme. O Times há muito é objeto de fascínio nacional, composto em partes quase iguais de veneração e repúdio. Durante décadas, foi considerado em certos círculos uma fortaleza do antiamericanismo de esquerda (e em outros um lacaio lambe-botas do Departamento de Estado).

É fácil deleitar-se com a satisfação malévola dos piores escândalos do Times, desde Jayson Blair e Judith Miller ao Massacre de El Mozote e à cobertura de Stalin por Walter Duranty (vou esperar enquanto vocês se informam a respeito dos dois últimos; eu já fiz isso). Mas há quase 20 anos saio todas as manhãs com grande expectativa para apanhar o pacote embrulhado em plástico azul no degrau da minha casa. Para o melhor e para o pior, o jornal é uma instituição excepcionalmente importante na sociedade americana. Não tê-lo à mão para analisar, criticar e argumentar contra seria um escândalo pior que todos os outros. Dito isso, suspeito fortemente que, para sobreviver, o NYT tenha de se submeter a uma mudança radical e rápida muito maior do que qualquer um que trabalha lá gostaria.

O filme de Rossi é um argumento irrefutável em defesa dos valores tradicionais do jornalismo – uma busca desinteressada pela “versão mais adequada da verdade”, como diz Carl Bernstein, o veterano do Washington Post; e também da necessidade de adaptar esses valores à era da nova mídia, em que praticamente tudo o que diz respeito à maneira de divulgar e consumir a informação já mudou. Obviamente a Salon, com algumas outras publicações da internet, está na mesma luta, e não pretendo afirmar que qualquer um de nós já tenha tudo resolvido. Enquanto as imagens finais dessa obra, que pretende servir de inspiração sobre a arte, a colaboração e a integridade de uma era cujos padrões estão se dissipando, se dissolvem na tela, não podemos deixar de suspeitar que a grande luta da Dama Cinzenta, como o jornal foi apelidado, só esteja começando.

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[Andrew O’Hehir escreveu este artigo para a Salon.com]