Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O anti-Watergate

O axioma, quase clichê, de que a história só se repete como farsa, assume características de um determinismo assustador no caso Veja /José Dirceu. Enquanto a história do jornalismo tem seu momento mais grandioso e emblemático no caso Watergate, o jornalismo brasileiro encontra seu contrário no caso do repórter de Veja invadindo o quarto do ex-ministro.

Se, no primeiro caso – cujo nome se tornou sinônimo de jornalismo eficiente, público e independente –, dois repórteres, munidos de sua credibilidade, investigam e denunciam a invasão do edifício-sede do Partido Democrata pelos partidários republicanos do presidente Nixon, a patética tentativa de invasão do quarto de hotel do petista pelo jovem repórter de Veja vai se consolidando como o exemplo mais acabado do anti-jornalismo que a revista resolveu adotar nos últimos anos.

Numa espécie de Watergate às avessas, Veja joga fora os últimos princípios jornalísticos que porventura ainda tivesse e opta por ser este arremedo de partido político que se nega a “sujar” as mãos na política real, mas adora refestelar-se na benesse de ser o representante de uma elite acéfala. Seria injusto com o repórter se víssemos nesse caso somente inexperiência, incompetência ou mau-caratismo. Seria ingênuo e injusto com a sociedade se não enxergássemos e compreendêssemos o papel que Veja se reservou no cenário brasileiro.

A Veja contemporânea assume seu papel de espécie de pasquim do século 18 e, sem constrangimento, troca a informação pela opinião, quase sempre gerada no seu departamento comercial. Faz isto, precisamos reconhecer, por força das circunstâncias. A elite econômica nacional está sem partidos, sem liderança e sem bandeiras. A mídia sai em seu socorro. Veja não está sozinha, é verdade, mas está imbatível na sua disposição de vanguarda.

Descompromisso com a verdade

Mas, afinal, tirando a patuscada do repórter, Veja tem o direito de investigar, duvidar ou odiar José Dirceu? Sim, desde que não invadindo sua privacidade, permitindo o contraditório das supostas denúncias e trabalhando dentro do restrito interesse público. Saber a verdade sobre o petista é absolutamente republicano; conhecermos meias verdades que atendem somente a interesses privados é completamente autoritário.

Veja não está sozinha, é verdade; Silvio Berlusconi e Rupert Murdoch lhe fazem uma incômoda companhia. A opinião pública internacional deu seu recado: este suposto jornalismo não interessa às democracias. Começa-se a refutar um refrão que ninguém mais aguenta: que a liberdade de expressão confunde-se com a liberdade de expressão dos donos dos veículos de comunicação, ou mesmo de seus jornalistas, e não com o direito básico do cidadão. Mais do que José Dirceu, Dilma e o PT foram os alvos da revista. O jornalismo e a democracia foram as vítimas maiores deste ato imoral e ilegal.

Mas a cruzada de Veja e de parte da mídia nacional para liquidarem com a vida política e pessoal do petista parece estar comprometida, se depender da eficácia do método. Se, no Watergate original, Bob Woodward e Carl Bernstein derrubaram Nixon por invasão de domicilio e mentira, no arremedo brasileiro, a invasão e o descompromisso com a verdade por parte da revista podem estar reservando, contraditoriamente, um futuro político promissor para o ex-ministro.

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[Celso Augusto Schröder é presidente da Federação Nacional dos Jornalistas]