Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

O desabafo do plebeu

Na tarde de 27 de abril, no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, o Rei confirmou o poder da majestade. Roberto Carlos conseguiu na Justiça a retirada de circulação do ensaio biográfico sobre sua carreira, escrito pelo pesquisador Paulo César de Araújo. Foram cinco horas de audiência para decidir que a Editora Planeta vai recolher os livros que ainda estão à venda e entregar ao cantor os 11 mil exemplares em estoque. No início da carreira, Roberto teve suas diferenças com os bossa-novistas. Durante a ditadura militar, foi duramente criticado por ícones da MPB pela omissão nos debates políticos. Agora é alvo de manifestos assinados por artistas e intelectuais de renome e assiste a dezenas de internautas furarem o bloqueio da Justiça para divulgar o livro na internet. O Rei ainda não se manifestou, mas o biógrafo censurado abre o verbo nesta entrevista.

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Roberto Carlos conseguiu na Justiça a proibição da venda e o recolhimento da biografia. Alega que teve a privacidade invadida e acusa o livro de trazer ‘inverdades’ sobre sua trajetória. Como você recebeu a decisão?

Paulo César de Araújo – É um absurdo. O juiz concedeu uma liminar proibindo o livro antes do julgamento final do processo. Liminares são geralmente concedidas em casos muito graves, de ofensa à honra ou de ameaça à ordem pública. Até assassinos confessos aguardam o julgamento em liberdade antes de irem para a cadeia. Meu livro é um tributo a Roberto Carlos. Muitas pessoas comentam que esse foi o primeiro livro que leram na vida. São aqueles típicos fãs de Roberto, do Brasil profundo, que não têm o hábito de leitura e, de repente, se viram com um livro de 504 páginas nas mãos. É triste saber que essa foi a recompensa por ter me dedicado a pesquisar, pensar e explicar o maior fenômeno da história da música popular brasileira.

Passados cinco meses da publicação do livro, você avalia que o trabalho é de interesse público ou aceita o argumento de Roberto Carlos de que sua vida foi invadida?

P.C.A. – Com mais de 40 anos na mídia, Roberto Carlos já está mais do que acostumado a ter sua vida contada e recontada em reportagens de jornais e revistas. Meu livro é um trabalho histórico de pesquisa e reflexão sobre a música popular brasileira, tendo Roberto como fio condutor. Falo de bossa nova, tropicalismo, jovem guarda, início do rock, era do rádio, era da TV, ditadura militar. Qualquer trabalho biográfico consistente traz aspectos da vida pessoal do artista. No caso de Roberto, isso é indispensável porque sua obra é marcadamente autobiográfica. Ele relatou o que viveu e sentiu em canções como Lady Laura (sobre a relação com a mãe), Traumas, (sobre o pai), Amada amante (em homenagem a Nice), A atriz (para Myrian Rios), Mulher pequena e Eu te amo tanto (Para Maria Rita). O que fiz foi detalhar e relacionar este repertório ao contexto mais amplo da música popular brasileira.

Você é declaradamente fã de Roberto Carlos. Surpreende ser processado por ele?

P.C.A. – Não esperava essa reação. Foi uma grande surpresa, que me deixou muito mal, muito triste. O livro foi feito com muito cuidado e respeito à história do artista. Eu e a editora acreditávamos sinceramente na possibilidade de Roberto Carlos perceber o que todos percebem: que o livro é uma grande homenagem à sua trajetória.

Em dezembro, Roberto admitiu que não havia lido tudo, mas acusou o livro de estar cheio de ‘coisas que não são verdadeiras’ e ‘sensacionalistas’, em desrespeito a ele e a pessoas que estima. Como recebeu as críticas?

P.C.A. – Foram totalmente sem fundamento, de alguém que confessadamente não tinha lido o livro. Nos processos, os advogados dele não questionam qualquer fato relatado. Apenas reclamam que isso ou aquilo não devia ter sido contado. Ou seja, as supostas inverdades ficaram apenas nas palavras de Roberto.

Ao ser perguntado sobre quais seriam os pontos com os quais não concordava, Roberto se limitou a dizer que eram muitos, mas que não queria tocar no assunto. O que o incomodou mais?

P.C.A. – Os advogados reclamam de invasão de privacidade nos relatos do acidente na infância, da doença dos olhos do filho Dudu e da morte de Maria Rita, como se fossem segredos para o público. Me acusam de ter dito que Roberto Carlos ‘gosta de coisas ilegais e imorais’, quando apenas citei a música em que ele diz ‘tudo que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda’. Dizem que eu estaria chamando Roberto Carlos de racista ao relatar que, em determinada fase, deixou de gravar música negra para gravar composições de autores brancos. As acusações são as mais diversas e estapafúrdias possíveis. Mas acho que isso é apenas justificativa para pedir a proibição do livro. Roberto Carlos está incomodado é com a existência do livro. Há vinte anos, ele anuncia que vai começar a escrever uma biografia, que pretendia que fosse a única sobre sua trajetória. No processo, reclama da perda de ‘lucros futuros’ pelo fato de o meu livro tirar o ineditismo da biografia que um dia pretende escrever.

Seu livro anterior, Eu não sou cachorro, não (música popular cafona e ditadura militar), foi um grande sucesso. Artistas como Nelson Ned, Odair José e Aguinaldo Timóteo tiveram suas vidas expostas, mas ninguém reclamou. O trabalho sobre Roberto Carlos segue a mesma linha?

P.C.A. – O livro se enquadra neste processo de reavaliação da música (ultra) popular do Brasil. Briguei pelo reconhecimento de artistas para os quais a elite cultural sempre virou as costas. Ambos os trabalhos foram organizados em capítulos temáticos e focalizam aspectos da política e da cultura brasileira.

Há cerca de dois anos, o escritor Fernando Morais enfrentou o mesmo problema com Na Toca dos Leões – A história da W/Brasil. O que acha da proibição judicial a trabalhos jornalísticos e de pesquisa?

P.C.A. – Lamentável. Se alguém se sente ofendido com o conteúdo de um livro, que processe o autor ou a editora, mas deixe a obra circular livremente. O público tem o direito de julgar se ela merece ser lida. Este tipo de censura é uma coisa abominável, que remete ao index dos livros proibidos pelos regimes totalitários. Se isso prevalecer, vai ficar difícil escrever a história do Brasil.

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Jornalista