Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O efeito produtivo das boas notícias

Boas notícias na imprensa são sinônimo de politicamente incorreto e talvez por isso sejam mais raras que o razoável.


Boas notícias não significam que o mundo se transformou repentinamente num paraíso como se vivêssemos no mundo de Alice e seus coelhos malucos, capazes de se comprimirem para atravessar o buraco da fechadura e, em seguida, expandirem-se para ocupar o volume inteiro de uma sala, em completa contradição com a realidade.


Boas notícias convivem com tragédias e isso faz a diversidade do mundo. Sem elas o mundo perde a simetria e desaba destroçado pela tragédia.


Talvez por terem compreendido esse jogo enigmático do mundo, que afeta cada um de nós (às vezes todas as portas estão fechadas, depois, elas vão se abrindo uma a uma até, aparentemente, estarem todas abertas) os índios Kogi forjaram sua mitologia.


Os Kogi são literatos, como muitos outros povos indígenas, ainda que ágrafos (não escrevem). Vivem nas fraldas da Sierra Nevada de Santa Marta, em terras que agora pertencem à Colômbia, e seu território estende-se pelos vales dos rios Palomino, San Miguel e Ancho, entre 1 mil e 2 mil metros acima do nível do mar.


Neste período reflexivo que se interpõe entre o fim e o começo de um novo ano, quando recomeçamos uma nova volta em torno do Sol (ainda que por certa conveniência de calendário), certamente seria interessante uma incursão a outras culturas como a dos Kogi. Mas este não é o espaço mais adequado para incursões antropológicas, de forma que é conveniente restringir-se à mitologia dos Kogi, citando rapidamente sua cosmologia e um único poema.


O mito da criação dos Kogi relata que ‘o primeiro que existiu foi o mar, a mãe do mundo’. De acordo com este povo andino, ‘no princípio não havia nada, nem sol, nem lua, nem animais, nem plantas, nem gente; só havia o mar em completa obscuridade. A mãe, o mar, se chamava Gaulchováng. Ela não era gente, não era nada; era alma e espírito do que viria a ser. Era pensamento e memória’.


Quanto a um de seus mais belos e sintéticos poemas, diz o seguinte: ‘Estamos todos dormitando/ estamos todos sonhando/ não é verdade/ não é verdade/ que viemos na Terra para viver’.


Natureza humana


Os mitos, como se sabe, se expressam em linguagem alegórica e por isso mesmo, ao contrário do fundamentalismo religioso, entre outros desvarios interpretativos, não devem ser entendidos literalmente. Enquanto alegoria, no entanto, são atemporais, como os poemas de Homero e nos acenam com um sentido para o mundo.


E é este sentido para o mundo que nos leva de volta à interpretação das boas notícias na imprensa como acontecimentos politicamente incorretos e que por isso mesmo não merecem registro.


Uma fenda recente neste monolitismo é o artigo de Andrew Mack, diretor do Human Security Center da Universidade de Bristish Columbia e ex-diretor de Planejamento Estratégico no gabinete do secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Publicado originalmente pelo Washington Post, o texto de Mack foi reproduzido na edição de sexta-feira (30/12, pág. A 11) de O Estado de S.Paulo.


Para surpresa talvez da totalidade dos leitores, Mack assegura, com base em estatísticas, que o mundo está mais pacífico hoje que há um bom tempo atrás, contrariando o que os mitólogos chamam de ‘uma idade de ouro’, um período no passado quando tudo foi melhor.


O mundo, certamente vale a pena reafirmar, não se transformou repentinamente num paraíso. Muito menos aos olhos catastróficos da mídia. Mas há menos conflitos hoje (apesar dos combates no Oriente Médio, entre outros) que à época da Guerra Fria, a queda de braços entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética.


Mack aponta que após cinco décadas de aumento de conflitos armados, houve uma queda, em escala mundial, a partir do começo dos anos 1990 e esse declínio continua.


Em 2003, por exemplo, havia 40% menos de conflitos no mundo do que em 1992. E os confrontos mais sangrentos, produzindo mil ou mais mortos em campos de batalha, tiveram uma redução de 80%. O número de genocídios e massacres indiscriminados de civis teve idêntica redução (80%), enquanto as violações dos direitos humanos desapareceram em pelo menos cinco regiões do mundo desenvolvido.


O terrorismo internacional, reconhece Mack, é um tipo de violência que aumentou. Mas essas ocorrências, por mais abomináveis que sejam e são (todo tipo de violência é abominável aos olhos de quem compreendeu a essência da natureza humana) ocorre num contexto marcado por certa pontualidade.


Embaixo da terra


Andrew Mack entende que a melhor explicação para esta redução de violência (que coincide com certa queda também em escala interna, nos Estados Unidos, onde as estatísticas estão disponíveis) foi o final da guerra fria e o açulamento de choques que ela produziu em escala internacional.


O caso do ex-ditador chileno, o general Augusto Pinochet é um espelho desta nova ordem. O general que incorporou poderes quase divinos para eliminar os que se opunham à sua visão de mundo deveria passar o ano trancafiado numa prisão, vendo o Sol ‘nascer quadrado’, como relatavam ingênuas piadas sobre inofensivos beberrões.


Nesta situação a Organização das Nações Unidas (ONU), com todas suas limitações, vem tendo um papel de maior destaque para evitar conflitos e pôr fim aos que estão em curso, uma notícia que faria a felicidade de homens como Albert Einstein e Bertrand Russel.


A arrogância de George W. Bush em ignorar a ONU e partir para o ataque unilateral no Iraque – ironicamente o berço da história, pois ali nasceu a escrita – pode ter reforçado, em vez de enfraquecer, a ONU, apesar dos mais de 30 mil iraquianos mortos desde então.


Os mais de 2 mil americanos mortos no Iraque também devem ser lamentados. Ao contrário de uma visão sumária que vê nesses homens pouco mais que mercenários, boa parte deles são garotos pobres e desempregados do interior do país iludidos por um equivocado canto da sereia bélica.


A resistência à guerra, crescente nos Estados Unidos, especialmente a resistência das mães de homens mortos e mutilados, como aconteceu no Vietnã, sugere tudo, menos uma vitória militar para a instauração de uma ‘democracia’ que, em muitos casos, não é outra coisa senão o resultado de um profundo estranhamento cultural.


Evidentemente que Saddam Hussein era um bruto. Mas ele foi levado ao poder pelos Estados Unidos, com um olho na influência da antiga União Soviética e outro embaixo da terra, nos ricos poços de petróleo que fizeram a fortuna do clã Bush.


Marchas populares


Talvez possa se pensar que a redução de conflitos em escala internacional seja condição necessária mas não suficiente para se amenizar conflitos que, em muitos países – caso de metrópoles brasileiras – sugerem cenas de guerra civil.


A bomba recheada de pregos na popular rua 25 de Março, em São Paulo, às vésperas do Natal, é um exemplo disso. Outro, são as ‘balas perdidas’ que sibilam pelos céus do Rio, fazendo vítimas entre os mais improváveis.


O mundo não se transformou num paraíso. Mas ignorar avanços, como faz a mídia, é quase um atentado de lesa-humanidade. O caos que se desenha, como se tivéssemos às vésperas do final dos tempos, inibe iniciativas capazes de enfrentar a violência nas suas mais variadas acepções. No Brasil, por exemplo, desestimula, entre outros movimentos, marchas populares pelas ruas, denunciando o descaramento de políticos e exigindo que suspendam o saque que fazem aos cofres públicos.