Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O escândalo das concessões que ninguém vê

As novas denúncias de Veja sobre as atividades do senador Renan Calheiros como empresário de mídia tratam da ‘sociedade secreta’ com o usineiro João Lyra para a formação de um grupo regional de comunicação, esmiúçam os valores pagos, a forma de pagamento, e identificam os testas-de-ferro utilizados para tirar o seu nome do negócio (edições 2020 e 2021; págs. 60-66 e págs.78-80).


Apesar da grande repercussão, as reportagens passam ao largo da fábrica de irregularidades e prevaricações que permite aos parlamentares (deputados federais ou senadores) beneficiarem-se indevidamente de uma concessão de radiodifusão. As denúncias (desta vez investigadas) tratam de uma grave ilegalidade/imoralidade, mas ignoram as circunstâncias que permitiram a sua multiplicação em larga escala – a ponto de comprometer grande parte do Legislativo federal e viciar a estrutura da nossa mídia eletrônica.


Denuncia-se o ilícito como se fora algo excepcional, inédito, e deixa-se de lado o sistema que produz centenas de ilícitos da mesma natureza, alguns de proporções ainda maiores. A ‘sociedade secreta’ do presidente do Senado com o usineiro não enganou apenas a Receita Federal e a Justiça Eleitoral, mas oferece um flagrante perfeito das aberrações e anomalias que permeiam nosso cotidiano político-administrativo sem chamar a atenção.


Sentido de autodefesa


Um legislador não pode ser concessionário de um serviço público, ainda mais de radiodifusão. Esta confusão entre beneficiador e beneficiário, além de corporativa, atenta contra a isonomia e agride a democracia. Nunca é demais repetir: o legislador não pode ser concessionário porque a ele cabe fiscalizar a concessão. O conflito de interesses que resulta desta duplicação é imoral, atenta contra o decoro parlamentar, é causa justa para uma cassação.


Veja não se fascinou com os eventuais desdobramentos sistêmicos ou endêmicos contidos em suas denúncias porque está fixada na tarefa de derrubar o presidente do Senado. Seu leitor está sendo treinado para exigir castigos e, não, o fim das mazelas. Prova disso é que o maior artífice da distribuição de concessões de rádio e TV para parlamentares foi o falecido senador Antonio Carlos Magalhães (ministro das Comunicações durante o governo Sarney), que durante duas décadas foi o queridinho de sucessivas gerações de editores do semanário.


Outra razão para concentrar na esfera fiscal a nova saraivada de acusações contra Renan Calheiros é pragmática. Se os demais senadores perceberem que também podem ser enredados na acusação de beneficiar-se com concessões de rádios e TV, certamente se tornarão refratários a qualquer punição contra o presidente da Casa.


Anomalia legislativa


Mas como explicar a frieza dos grandes jornais no tocante às incursões de Renan Calheiros no mundo da mídia eletrônica regional? O ‘coronelismo eletrônico’ não se destaca na pauta porque nossa mídia geralmente não gosta de falar em mídia. Embora a Folha de S.Paulo e em menor escala o Estado de S.Paulo já tenham se ocupado dos parlamentares eletrônicos e dos respectivos currais midiáticos, o momento parece não ser conveniente para provocar um solavanco capaz de ameaçar o pacto de não-agressão ora vigente no mundo da comunicação.


A mídia pode derrubar Renan porque não provou a origem do dinheiro para comprar metade de um jornal e de uma rádio em Alagoas. Jamais se animará a derrubá-lo porque o senador serviu-se de uma anomalia legislativa que coloca sob suspeita grande parte dos grupos regionais de mídia.


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CartaCapital, autoria escamoteada


A direção de CartaCapital dedicou seis páginas da sua última edição (de 15/8, pp.10-15) a uma denúncia contra ‘os novos coronéis’, políticos que apadrinham ‘rádios comunitárias’. A causa é justa, merece aplausos. Mas não fica bem omitir que o estudo sobre o qual se inspira a matéria foi financiado e produzido por este Observatório da Imprensa. Informar que este estudo foi feito com o ‘apoio do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) ligado à Unicamp’ é um ato de lesa-autoria – pirataria.


O Projor é a entidade mantenedora do Observatório da Imprensa, este foi quem encomendou, produziu, acompanhou, editou e publicou o trabalho. Nada a ver com a Unicamp, por mais honroso que seja o parentesco. [Ver ‘Rádios comunitárias – O coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)‘ e ‘Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento‘]


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Governo decide recadastrar rádios e TVs


Humberto Medina # copyright Folha de S.Paulo, 14/8/2007


Uma semana depois de o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), ter sido acusado de usar laranjas para ser proprietário de uma rádio, o Ministério das Comunicações decidiu fazer um recadastramento no setor. Todas as empresas que operam rádio e TV terão que enviar, em 60 dias, informações sobre composição do capital, quadro de diretores, procuradores com poder de gerência, endereço e nome fantasia.


De acordo com o ministério, a medida não está diretamente relacionada às denúncias envolvendo Renan -faz parte de um esforço para diminuir o número de processos em tramitação e atualizar o cadastro, que, segundo o ministério, está defasado. O último recadastramento foi feito em 1973. Segundo a edição da revista ‘Veja’ da semana passada, a JR Comunicação, emissora FM no município de Joaquim Gomes (AL), pertence ao senador, o que ele nega. O caso é investigado na Corregedoria do Senado.


Na terça-feira da semana passada, o próprio senador assinou decreto legislativo aprovando nova concessão de rádio para a empresa JR Comunicação, pelo prazo de dez anos, renováveis. A concessão foi adquirida pela empresa em licitação pública do Ministério das Comunicações. A concorrência foi aberta em 2001, e a empresa venceu com a proposta de pagamento de R$ 222.121. Do contrato social da empresa que o ministério encaminhou ao Congresso consta que a JR Comunicação pertence a Carlos Ricardo Nascimento Santa Ritta e a José Carlos Pacheco Paes. A empresa tem sede em Maceió e capital social de R$ 100 mil. Santa Ritta ocupa cargo em comissão no gabinete de Renan no Senado, como assessor técnico, desde 2004.


O ministério diz que o Código Brasileiro de Telecomunicações não impede que pessoas com cargo eletivo participem de rádios ou emissoras de TV. A legislação (lei 4.117/ 1962, alterada pela lei 10.610/ 2002) impede apenas que os políticos exerçam cargos de diretor ou gerente das emissoras. Essa mesma legislação prevê que as rádios e TVs informem previamente ao governo alterações no quadro societário.


A participação de políticos em rádios é uma polêmica que já envolveu o próprio ministro das Comunicações, Hélio Costa (PMDB-MG). Até abril de 2006 o ministro era sócio de uma FM em Barbacena (MG), mas teve de se afastar da emissora, seguindo orientação da Comissão de Ética Pública, órgão ligado à Presidência da República.


A Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) elogiou o recadastramento e disse que o setor está pronto a cumprir as exigências. ‘É uma boa iniciativa. A maioria das exigências as empresas já são obrigadas a enviar anualmente ao governo. Isso vai dar agilidade à futuras alterações’, afirmou Daniel Pimentel Slaviero, presidente da associação, da qual fazem parte 2.500 rádios e 320 emissoras de TV.


O recadastramento das emissoras de rádio já estava previsto no programa de governo de Luiz Inácio Lula da Silva que tratou da ‘democratização das comunicações’, em 2006. ‘Recadastramento de todas as concessões, para cancelar as concedidas a entidades que não estejam em conformidade com a lei e desenhar um mapa da concentração do setor’, dizia o documento. Também é defendido o recadastramento para as TVs.


O texto pede ainda a ‘participação popular’ na concessão, renovação e outorga de concessões, mas não detalha como isso seria feito. Críticos vêem inspiração ‘chavista’ na idéia.