Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O estranho direito de ofender pessoas

Sei que vou na contramão, mas acho que os coleguinhas ou não estão vendo chifre na cabeça do touro ou não leram com atenção a matéria do New York Times sobre o suposto alcoolismo do presidente do Brasil. Entre outras bobagens, há uma frase lá que, se não justifica, pelo menos explica a reação indignada da última vítima de Larry Rohter. Está escrito:

‘Mr. da Silva nasceu de uma família pobre de um dos estados mais pobres do país e levou anos na liderança de sindicatos, meio em que se bebe pesado. A imprensa brasileira descreve repetidamente o pai do presidente, Aristides, que ele pouco conheceu e que morreu em 1978, como um alcoólatra que violentava os filhos.’

Não nasci ‘num dos estados mais pobres do país’, mas atuei por muitos anos junto ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro e colaboro com a Federação Nacional dos Jornalistas; já editei, também, jornais de sindicatos sem que, nesse ‘meio’, tenha presenciado a bebedeira anunciada pelo correspondente. Leio jornais todo dia mas deve ter-me escapado a repetida referência a ‘seu’ Aristides. Mas, sobretudo, na minha família, aprendi que não se xinga mãe e pai dos outros. No Brasil, pelo menos entre gente modesta, isso é a ofensa mais grave possível, seja falsa ou verdadeira. Se verdadeira, mais ainda.

A carta escrita pelos advogados de Larry Rohter dá uma pista, ao atribuir a erro de tradução a ira presidencial. A expressão usada no original período transcrito acima foi ‘abuse the children’, que efetivamente pode ter o sentido de ‘maltratar as crianças’ mas que, atualmente tem sido usada como eufemismo para ‘fornicar com os filhos’. É pesado isso.

Além do mais, o comportamento do pai de Lula nada tem com a história. Vícios e virtudes não se herdam – esse, pelo menos, é o ponto de vista dominante entre os brasileiros. Não sei se os fundamentalistas do Sul dos Estados Unidos concordam.

Responsabilidade profissional

Um ‘comunicador’ de rádio que me entrevistou antes da tentativa de expulsão do correspondente americano disse uma frase que ajuda a entender a tolerância da turma com Rohter: definiu ‘alcoólatra’ como ‘o sujeito que bebe não pelo gosto da bebida mas pelo efeito’. É uma definição clínica, cujo emprego fora do contexto médico é moralista, porque não respeita a privacidade dos outros – o tipo de entendimento que cabe bem para aqueles tablóides ingleses preocupados com os hormônios do Príncipe Charles. Alcoólatra, do ponto de vista da sociedade, é, para mim, o sujeito que trabalha, dirige automóvel ou espanca a mulher estando bêbado. Quem bebe em casa, no bar da esquina ou na casa de amigos, à noite, depois do expediente, pode ter um problema, mas isso não é da conta de ninguém, nem justifica a preocupação nacional denunciada pelo correspondente. E ninguém viu Lula bêbado.

Larry Rohter é um criador de casos conhecido, aqui e na Argentina. Tem fama de ser aquele tipo de repórter que não precisa ser censurado, porque jamais escreverá algo que possa desagradar seus chefes.

Entre outras de suas batatadas, lembro-me de uma recente: ele entrevistou Roberto Amaral, então ministro da Ciência e Tecnologia, cidadão que conheço há três ou quatro décadas, cientista político com produção excelente, democrata e nacionalista muito sério.

Amaral vinha sendo vítima de uma dessas ‘frituras’ comuns na corte de Brasília. Questionado pelo Rohter, disse que o Brasil estava instalando uma indústria para enriquecimento do urânio e que pretendia dominar todo conhecimento relacionado com a energia nuclear. O que deu no New York Times? Que o Brasil queria fabricar bombas atômicas.

Lá ficou o meu amigo com a fama de ‘ministro trapalhão’, espalhada por esses mesmos coleguinhas preocupados com a liberdade de imprensa mas menos atentos à responsabilidade profissional diante do público e das fontes, com a ética e com o respeito aos direitos humanos. Eles também existem, mesmo para ministros de Estado e presidentes da República.

Estratégias corretas

Coincidentemente, a entrevista com Amaral atendeu à preocupação do governo americano com os progressos da ciência brasileira em campos sensíveis, principalmente mas não só a biotecnologia e as técnicas agrícolas em geral. Também por coincidência, a matéria sobre o presidente brasileiro foi publicada quando se anunciava sua viagem à China, hoje segunda parceira comercial do Brasil e que dispõe de meio trilhão de dólares em caixa para investir no exterior, sobretudo em países capazes de suprir de alimentos o apetite crescente de sua população de um bilhão e 300 milhões de pessoas.

E também ocasionalmente ocorreu pouco depois de a Organização Mundial do Comércio ter dado vitória ao Brasil numa pendência comercial que envolve os subsídios ao algodão que prospera nos campos sulinos dos Estados Unidos, onde predomina o eleitorado republicano, e quando crescia a pressão sobre o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, e sobre o presidente Fidel Castro, de Cuba. Para a direita americana, Fidel, Chaves e Lula formam um ‘eixo do mal’ cucaracho.

Se bem conheço o Itamaraty e se entendi adequadamente as manifestações do ministro Celso Amorim (de vez em quando, gosto de ler entrelinhas), a tentativa de expulsão de Rohter – que por certo não se consumaria – teve seu lado positivo: funcionou como recado, dirigido principalmente às autoridades da República Popular da China.

Para que não me entendam mal, gostaria de acrescentar que, fora estratégias corretas na política externa e em um ou outro setor da administração, o governo do presidente Lula me parece muito ruim. Em suma: não ponham chapa-branca no que está escrito acima.

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Jornalista, professor-titular da Universidade Federal de Santa Catarina