Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O horror em rede nacional

Quando um fato com dimensões trágicas adentra as redes nacionais, é normal – e mesmo esperado – que nos questionemos sobre como o jornalismo o está “traduzindo” para seu público. Enquanto à população é permitido reagir legitimamente pela emoção, as narrativas jornalísticas devem, ao menos em teoria, buscar retratar os fatos com a sobriedade e retidão o quanto for possível (se é que isso é possível).

Nesta semana, todos nos escandalizamos com a notícia do estupro coletivo com a adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro. Ao jornalismo coube a tarefa ingrata de sublimar a comoção e tentar narrativizar esta história de uma forma coerente ao público. É um desafio enfrentado por todos os veículos, aí incluindo todas as emissoras de televisão, e cumprido com mais ou menos sucesso por cada um deles.

A cobertura feita pelas TVs traz elementos interessantes à análise. Lidamos com o embate entre as múltiplas versões – tal como o confronto entre a fala dos advogados que proferem as defesas protocolares dos clientes, e cara (de pau?) destes próprios clientes, que chegam sorrindo na delegacia e acenam, meio infantis, para as câmeras de televisão. Há também um certo embate construído (propositalmente?) pela narrativa do caso: enquanto os advogados, todos homens, falam à imprensa na delegacia, embecados em seus ternos elegantes, a advogada da menina é simples, veste camiseta, e parece falar direto da favela. Sua performance para a câmera parece, em si mesma, resistência – ela busca respeito à força, por meio da gravidade do que diz e não pela forma em que se exibe. Quando ela fala, denuncia a pouca sensibilidade dos colegas (em especial, do delegado) no tratamento do caso.

Objeto de escárnio

Mas, sobretudo, há um duelo aqui: as falas anexadas posteriormente ao acontecimento são postas em contradição com o fato de que há um vídeo. Talvez a novidade na abordagem televisiva do caso é que a atenção se voltou não à imagem que ele carrega (logo entendida como ilegítima e, por isso, aparentemente as emissoras entraram em consenso que seria pouco ético exibi-la), mas ao áudio que vazou. Aquilo que os homens dizem entre eles parece um signo indefensável que grita aos ouvidos de quem queira ouvir: a falta total de empatia com a mulher que estava ali diante deles. O áudio não deixa dúvidas que ela é objeto de escárnio, uma desculpa para que estes rapazes se sintam mais próximos entre eles. Juntos, eles cantam “mais de trinta engravidou” (que seria, segundo tenta defender um advogado, uma música que seu cliente ouve desde a infância).

Mas algo ocorre nesse caldo: a ideia de que o jornalismo tem como parâmetro máximo a objetividade (ou seja, que a subjetividade e as ideologias de quem faz o produto notícia devem ser sempre “controladas” para que o jornalismo possa se aproximar de modo mais completo possível do que de fato aconteceu) já foi há tempos assimilada pelo público. É como se tivéssemos entendido que, cada vez que um jornalista tenta ser imparcial, soa mais como um efeito (artificial) do discurso do que exatamente a exposição da verdade. Assim, a população passa a exigir, ao contrário, alguma transparência das intenções dos profissionais e das emissoras, abrindo mão dos recursos atrelados à objetividade, como se precaver dos processos jurídicos ao denominar o “suposto estupro” ao invés de nomear o estupro em si.

É claro que o horror do fato também traz espaços para a exploração do horror nas coberturas jornalísticas. Certamente após muito trabalho de convencimento e persuasão (contradizendo, por um lado, a postura de proteção da advogada da menina), a adolescente fala “com exclusividade” para as emissoras, que correm atrás da versão mais esperada de todas. O que ela pode afinal dizer que vá nos levar a uma maior compreensão do fato? Sentir a experiência do horror em rede nacional, ouvir a adolescente se descrever “como um lixo”, pode agregar alguma coisa para que este tipo de tragédia se repita, ou é mais uma maneira de sentirmos algum tipo de prazer (inconsciente, é claro) no sofrimento alheio?

Se é que algo de bom possa sair disso tudo, proponho aqui remar contra a maré do pessimismo quanto à qualidade do jornalismo. Penso que o episódio talvez traga alguma luz ao revelar certas nuances interessantes. Primeiramente, destacaria a repercussão do episódio. Talvez haja até um certo conforto em pensarmos o tamanho da mobilização – da mídia e, aparentemente, da polícia – da tragédia isolada de uma menina, habitante de uma favela. Como as vozes nas redes sociais repercutiram, é óbvio que esta tragédia não é apenas dela, mas de todas as mulheres e, mais que isso, de toda a população. O fato de que os veículos jornalísticos pareçam ter entendido isso é, creio eu, um bom sintoma.

Mas não sejamos ingênuos: o episódio repercute também porque encontra alguma consonância nos discursos que já circulam – em especial, nas pautas de feminismo e que elucidam de que forma a mídia perpetua a chamada cultura do estupro. Se o caso da menina é debatido tanto nesses dias, em parte é porque ele conversa com um tema que tem sido abordado (e reivindicado) pela população. Não por acaso, a agenda do Jornal Nacional do dia 28 de maio encaixou entre as pautas sobre o caso outras que dialogavam com ela, como uma investigação policial sobre um ranking machista em festas universitárias (ora, se isso sempre existiu, por que é pauta agora?) e outra sobre uma cantora pouco conhecida que denuncia as ameaças recebidas em redes sociais.

É de se pensar, afinal: se não houvesse o vídeo divulgado no Whatsapp, o quanto este caso ocuparia das concorridas agendas das emissoras de televisão? Quantos casos semelhantes já ocorreram com menos repercussão, por não envolverem ninguém de “importante”? Talvez tenha precisado da potencialidade da tecnologia para que o jornalismo finalmente abrisse os olhos para certos fatos que estão aí, desde sempre, no mundo que habitamos.
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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha