Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo de campanha

Até o primeiro turno o grupo Liberal, mesmo apoiando o PSDB, manteve uma aparência de equilíbrio. Fustigava Ana Júlia, mas não sistematicamente. Levantava a bandeira de Geraldo Alckmin, mas não fulminava Lula. Os Maiorana pareciam convencidos, à semelhança dos tucanos de alta plumagem, que a eleição seria decidida já no primeiro confronto, sem muito esforço.

Frustrada essa expectativa, voltaram à agressiva posição de campanha de 1990, quando declararam guerra aberta e total a Jader Barbalho e usaram todos os recursos possíveis em favor de Sahid Xerfan, o oponente do peemedebista na disputa pelo governo do estado. Não fizeram qualquer esforço para mascarar essa beligerância com algum escrúpulo jornalístico.

Em 1990, como agora, os Maiorana perderam a guerra. O episódio pode ter desdobramentos imediatos ou mais demorados. A tendenciosidade das Organizações Romulo Maiorana não apenas se nivelou à parcialidade do grupo RBA, de propriedade de Jader: desta vez, a superou.

Esse é um dado extremamente grave. Os veículos de comunicação do deputado federal do PMDB têm frustrado as tentativas de profissionalização, sem a qual jamais alcançarão à plena credibilidade, pelas constantes recaídas em partidarismo durante o período eleitoral. A condição política do dono compromete a razão de ser da empresa jornalística.

Mesmo que nenhum dos Maiorana seja político, por decisão própria ou contingência superior (Ronaldo e Romulo Júnior tentaram sem êxito essa opção), seus veículos de comunicação se comportaram nesta eleição ainda pior do que em 1990. Era natural e até desejável que fizessem uma opção eleitoral, como qualquer órgão da imprensa o faz em qualquer lugar do mundo: na página editorial. Ou, mesmo em outro lugar, num favorecimento sutil, atenuando-o para não comprometer o que é fundamental e indispensável numa empresa jornalística: não sacrificar os fatos, a informação.

Boa vontade

Ao longo da campanha para o segundo turno, O Liberal evoluiu (ou involuiu, conforme a ótica) para um paroxismo de parcialidade, de unilateralidade, de completo desequilíbrio. No dia da nova eleição, a manchete do jornal destacava o empate técnico entre os dois candidatos ao governo, segundo pesquisa do Ibope, colocando em segundo plano a vantagem de dois pontos de Ana Júlia sobre Almir Gabriel.

O material reforçava essa intenção ao comparar o resultado da última pesquisa Ibope com a polêmica sondagem anterior do instituto, que dera 53% para a petista e 43% para o tucano. A conclusão do título de primeira página: ‘Ana Júlia cai, Almir sobe’. E o primor de manipulação da informação: pela angulação da ilustração, mesmo estando dois pontos atrás, Almir aparecia à frente da competidora.

A edição de 29/10, com o dobro da tiragem dos dias de semana, fazia tudo que estava ao seu alcance para convencer o leitor de que Almir Gabriel revertera a tendência e iria vencer o segundo turno (o que parece ter sido o propósito da última pesquisa, desconexa em relação à anterior). Para não perder seu voto, o eleitor tinha que votar no ex-governador novamente. Manchetes, notícias e reportagens caminhavam em uníssono nessa direção, ignorando completamente os mais elementares critérios editoriais de tratamento da informação e as mais simples regras éticas no trato dos fatos – e no respeito à opinião pública.

Se pudesse, O Liberal viraria a mesa e daria um golpe político para evitar que a vontade do povo se consumasse. O jornal precisava desesperadamente de uma vitória do homem que, em 1995, pôs em prática uma relação nunca antes registrada entre o poder público e uma empresa jornalística.

Através de um convênio, dessa forma escamoteando a necessidade de licitação pública, que se imporia ao contrato, o governo obrigou sua Fundação de Telecomunicações, responsável pelas emissoras Cultura de rádio e televisão, a desnaturar sua razão de ser e cometer um ato lesivo ao interesse público. A Funtelpa teve que ceder à TV Liberal sua rede de retransmissão de sinal de televisão, montada para levar uma programação cultural (que não é comercial) ao vasto interior do estado, cumprindo assim uma função pública; e, além de veicular a programação da Rede Globo, retransmitida pela TV Liberal, pagar à emissora particular por essa cessão. Nada de tão abusivo foi concebido e aplicado no setor, mantendo-se até hoje.

Todo mês a TV dos Maiorana receberia 300 mil reais por essa insólita parceria (valor que, reajustado e atualizado ao longo desses 11 anos, já deve ter passado do total de 40 milhões de reais). Aprofundada e amiudada a relação, mensalmente algo entre 1,5 milhão e 2 milhões de reais, por diferentes vias, saem dos cofres do erário para o caixa do grupo.

Não surpreende – mas ainda assim choca – ver a poderosa corporação abrir mão de todos os escrúpulos profissionais para se engajar na campanha eleitoral de um candidato que lhe foi tão generoso, engrossando um partido político que lhe fez a vontade. E lixando-se para o distinto público, para os fatos, para a informação, para a verdade.

Assim, a contraposição do grupo Liberal ao grupo RBA foi muito além de manter o equilíbrio entre os confrontantes políticos. Significou uma autêntica sabotagem à candidatura de Ana Júlia, que até então era interlocutora constante do mais novo dos Maiorana, justamente o responsável pela redação, Ronaldo, e contava com certa boa vontade da ‘casa’. A mudança brusca de tratamento representou uma verdadeira declaração de guerra. Brusca e unilateral.

Interesses comerciais

Vitoriosa, tendo ao lado o grupo de comunicação de Jader Barbalho, a nova governadora irá retaliar os Maiorana, que tudo fizeram para derrotá-la? É o que alguns dos seus correligionários desejam e garantem que ela fará. Quando Edmilson Rodrigues, então também no PT, derrotou o candidato apoiado pelo grupo Liberal à prefeitura de Belém, Ramiro Bentes, ele próprio anunciou, reiteradas vezes, que o poderoso grupo de comunicação iria pagar caro por sua arrogância. Chegou a organizar um comício em frente à sede do jornal para dizer diatribes contra os Maiorana e mandou seu secretário de finanças (o atual desembargador Geraldo Corrêa Lima) iniciar uma devassa contra a empresa.

Logo voltou atrás. E foi além de todas as expectativas na reversão: patrocinou a venda de um vídeo de uma campanha comercial do grupo Liberal, algo também inédito na relação – freqüentemente promíscua – entre governo e empresa jornalística. Nem assim Edmilson conseguiu eliminar a antipatia que os Maiorana lhe dedicavam, ainda quando brindassem a parceria temerária.

O comprometimento do grupo Liberal ultrapassou todos os limites da ética, da decência e do profissionalismo. Ainda assim, uma represália vingativa ou um facciosismo do governo do PT em favor do grupo RBA diminuirá e aviltará a gestão de Ana Júlia. Pondo fim a essa parceria danosa, ela podia também inovar, adotando um padrão sério e em favor da sociedade no trato com os grupos locais de comunicação.

Em matéria de jornalismo impresso, por exemplo, podia comprar uma cota de exemplares de um jornal diário de cada grupo para distribuir como leitura em sala de aula aos estudantes da rede pública de ensino médio e superior. Formar leitores de jornal é uma tarefa pedagógica e cívica importante.

Mas para fazer a aquisição, proporcional ao universo a ser atendido, o governo devia exigir dos pretendentes que se filiassem ao IVC, atestando sua circulação (a compra seguiria a proporcionalidade da tiragem); que fossem sociedades anônimas de capital aberto, oferecendo ações ao público em cada aumento de capital, sem que os donos perdessem o controle acionário; que criassem um conselho de redação, com a participação de leitores, como entidade de consultoria editorial; que adotassem a figura do ombudsman, para regular a relação com o público; e que indicassem seus representantes, obrigatoriamente jornalistas, para debater periodicamente o conteúdo de suas edições com os estudantes.

Talvez assim se obrigassem a respeitar sua missão, que é fazer jornalismo, sempre que se vissem tentados a servir-se do jornalismo para atender exclusivamente seus interesses pessoais e comerciais. O governo, enquanto representante da sociedade, não precisaria se comportar como macaco em loja de louça para lembrar esse respeito, imiscuindo-se no negócio privado, como é a tentação dos que defendem o projeto de criação do Conselho Nacional de Jornalismo. Mas não cederia seus favores para a perpetração dos abusos que se viu nesta eleição. Todos ganhariam com isso, até aqueles que, por problema de personalidade, só querem ganhar – e sempre sozinhos, o máximo, o inaceitável.

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Editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)