Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo policial precisa se reinventar

O Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social) lançou uma campanha chamada ‘’Mídia Sem Violação de Direitos’’ que visa receber e encaminhar denúncias de violações dos direitos humanos no jornalismo. Dentro de todas as denúncias que o site recebe e apura, os programas policias foram os que mais apareceram. Essas violações vão desde exposição indevida até desrespeito da presunção da inocência.

Quem já assistiu o filme O Abutre conhece o clássico do jornalismo policial. Muitas vezes são usadas imagens chocantes e depoimentos nem sempre bem apurados e contextualizados são algumas marcas desse estilo de narrativa que prevalecem sobre as boas práticas. Mas nem precisamos ir tão longe para encontrar isso. Programas como Cidade Alerta e Brasil Urgente possuem uma grande audiência e seguem o mesmo padrão desse estilo e contam com mais de 200 denúncias cada.

São comuns entrevistas com acusados de cometer crimes na porta da cadeia, quando eles ainda estão sendo detidos. É nessa hora que a ética da profissão do policial e do jornalista entra em jogo. O policial tem o poder e o dever de não expor aquela pessoa porque ela ainda não foi julgada. ‘’De acordo com princípio da presunção da inocência não se deveria sequer expor aquela pessoa porque, até então, ela vai ser julgada, então o policial tem que preservar a imagem dela’’, afirma o Consultor em Segurança Pública do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), André Vianna. Ele ainda complementa que a mídia tem um papel importante para evitar a exposição. ‘’Creio que também a mídia deveria respeitar essa questão, no entanto existe uma busca da imagem daquela pessoa que supostamente é o infrator’’, comenta.

O jornalista Hernani Vieira, ex-repórter policial e ex-editor de segurança da Gazeta do Povo, lembra que, no passado, o jornalismo policial sofreu desse mal diversas vezes. ‘’A crônica policial foi muito cruel no exibicionismo de acusados de crime ainda sem condenação e de vítimas da violência em todas as suas formas’’, afirma. Além desses casos, não eram raras as vezes que bandidos eram cultuados como mocinhos em história desse tipo. ‘’Temos exemplos de ‘’justiceiros’’ como Lúcio Flávio, Cabo Bruno e o delegado Fleury’’, lembra Hernani.

O jornalista precisa tomar esse cuidado para não criar factóides e nem novos vilões, como foi o caso das da menina Thayná ou das Bruxas de Guaratuba – onde devido às inúmeras versões criadas nunca se chegou à verdade. O professor de jornalismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), José Carlos Fernandes, comenta que fica muito difícil chegar ao fim de alguns casos. ‘’Nunca mais se saberá a verdade porque foram tantas versões que a imprensa foi publicando e também tantas versões que a própria polícia foi dando’’, conta José Carlos.

De acordo com o professor, os factóides surgem mais facilmente ‘’nos casos em que existe uma histeria coletiva e que a imprensa e a polícia sentem que precisam dar uma resposta rápida, quando elas são pressionadas’’.

A reinvenção do jornalismo

Hernani Vieira acredita que hoje em dia as coberturas são mais sóbrias que as de antigamente. ‘’Fatos policiais eram raros se comparados às estatísticas de hoje, com o que a imprensa fazia coberturas mais espetaculosas, sequenciadas, contínuas e até extemporâneas’’, afirma. Com o advento da internet e a melhora do sistema de comunicação, começaram a surgir tabelas sobre segurança pública e estudos maiores e mais aprofundados sobre o problema da violência graças a facilidade de manipulação desses dados. ‘’Não existiam portais de transparência’’, lembra Hernani.

Nem toda a imprensa seguia esse modelo. Os meios de informação sérios resistiam a esse tipo de cobertura, apesar da chamada ‘’imprensa marrom’’ que alimentava correntes e seguidores que a fazem existir até hoje. ‘’Foram muitas as vezes que me vi ora do lado, ora contra organismos ou agentes de polícia ostensiva ou repressiva, numa gangorra guiada pelo senso de justiça, de não precipitar julgamentos, de não expor acusados a linchamentos públicos e, tampouco, submeter ao ultraje vítimas ou familiares’’, conta o ex-repórter policial.

Esse tipo de cobertura pode causar muitos problemas. A divulgação de fatos e de suspeitos onde a informação não foi bem apurada pode causar situações de violência. ‘’Você tem o caso daquela mulher que foi linchada em Santos. A foto daquela mulher que roubava crianças e era parecida com ela saiu em um site na internet’’, lembra o professor José Carlos. Além dessa criação de falsos suspeitos, a exposição pode acabar duplicando o sofrimento das vítimas. O mais recente caso foi a da menina que sofreu um estupro coletivo por 30 homens e teve sua identidade vazada por alguns meios de comunicação. ‘’O jornalismo pode ser irresponsável e de altíssima exposição da vítima, principalmente de mulheres’’, comenta.

Esse tipo de prática clássica vem mudando aos poucos. O professor José Carlos Fernandes explica que o jornalismo de segurança pública é uma alternativa crescente ao clássico policial. ‘’A gente está num período de transição, a imprensa está se civilizando e pensando tudo em um cenário maior’’, afirma. A ideia é contextualizar os casos, deixando de depender apenas das fontes policiais, e explicar todos os fatores do crime. ‘’A mentalidade da segurança pública é nova, é mais estrutural e não tem só a polícia como fonte. Tem a sociedade, a sociologia, a ciência e as relações comunitárias como fonte. É um jornalismo sofisticado’’, conta o professor.

Hernani Vieira concorda que não se pode depender apenas das fontes oficias. ‘’Penso que as declarações oficiais devam ser questionadas sempre’’, afirma. O jornalista precisa juntar a percepção e a experiência, somadas a uma checagem de informações, para elaborar um material jornalístico que possa ser levado do público. ‘’Entendo, contudo, que o jornalismo sério e ético deve se pautar pela prudência, pela análise criteriosa de detalhes de um relato, filtrando possíveis vícios ou contradições que podem conduzir a julgamentos apressados’’, explica.

Como mudar essa cultura?

Um dos problemas enfrentados e que devem ser mudados é que os cursos de jornalismo não possuem uma matéria específica que trate o jornalismo policial. Por conta disso, a formação desses profissionais acaba sendo rasa nesse aspecto. ‘’As faculdades acabam rejeitando o jornalismo policial como uma coisa menor’’, afirma José Carlos. André Vianna pontua a mesma questão: ‘’Seria muito interessante que os cursos regulares de formação de profissionais de área de comunicação também recebessem uma capacitação para lidar com a polícia’’.

Outro fator importante é a fiscalização de boas e más práticas do jornalismo. ‘’Não enxergo os maus exemplos de jornalismo sendo devida e exemplarmente apenados’’, comenta Hernani Vieira. Ainda de acordo com a ética, ele acredita que essa parte do jornalismo deveria ser reforçada dentro da sala de aula, ainda mais com a experiência de quem esteve lá na prática. ‘’Acredito que a ética deveria ser um exercício permanente no cotidiano do aluno-jornalista e que, além dos professores, os bons exemplos dessa dignificação da profissão pudessem contribuir mais nesse aprendizado’’, afirma.

No lado da polícia, o Consultor de Segurança Pública afirma que também não existe um treinamento específico para lidar com a mídia e com jornalistas. ‘’Eu desconheço instituição que dê um treinamento específico pra tratar um profissional A, B ou C de forma distinta. Até porque precisaria enfocar na norma relativa ao desempenho daquela atividade e a formação, de modo geral, em todas as polícias do mundo, elas são generalistas’’, afirma.

Porém, existem algumas iniciativas isoladas, como o coronel Roberson Bondaruk, oficial da reserva da Polícia Militar do Paraná, que se dedicou a comunicação da polícia. ‘’Percebi que o contato com a imprensa me botava em contato com a comunidade. Comecei a ver que havia um universo de conhecimento fora da caserna e que esse contato era importante’’, conta Bondaruk.

Portanto, seria interessante uma maior integração das áreas policial e jornalística para melhorar o trabalho e beneficiar quem é atingido pelas ações desses dois profissionais: a sociedade. Tanto na Universidade quanto no curso de formação de policias poderia existir uma mudança.

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Plínio Lopes é estudante de jornalismo da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e participante do projeto Repórter do Futuro.