Tuesday, 07 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

‘O jornalismo precisa ser livre do governo, qualquer governo’

O jornalista Eugênio Bucci deixou a presidência da Radiobrás em abril último certo de haver cumprido o compromisso assumido com o presidente Lula, que o convidara para o cargo quando de sua eleição para o primeiro mandato, em 2002. Com a experiência acumulada em redações e na universidade, e agora no serviço público, Bucci reuniu massa crítica suficiente para produzir reflexões tão pertinentes quanto as que oferece na série ‘A imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do jornalismo em nossos dias’, que o Observatório publica a partir desta edição.


A tese central do texto é que o jornalista e o jornalismo têm o dever de ser livres de toda e qualquer amarra que comprometa sua independência. De outra parte, Bucci também sustenta ser ‘vital que a imprensa debata a imprensa’, embora, no Brasil, ainda estejamos longe de ‘tratar o direito à informação no nível dos demais direitos, como a educação ou a saúde’. ‘Onde esse direito não se faz respeitar integralmente, a liberdade necessária para bem informar a sociedade não pode ser exercida plenamente’, afirma.


O texto, como se verá, não sugere fórmulas prontas nem receitas universais, mas reafirma o papel da mídia, da imprensa e de seu princípio ativo, o jornalismo, como fatores decisivos no processo de aperfeiçoamento da democracia. E reivindica mais qualidade ao jornalismo praticado nos meios de informação como condição essencial para a manutenção de seu compromisso histórico com o interesse público. Por isso mesmo a mídia deve submeter-se ao exame continuado exercido pela sociedade: ‘Quanto mais debatida publicamente, melhor é a imprensa’, diz Bucci, que concedeu ao Observatório a entrevista a seguir.


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Por que deixou a presidência da Radiobrás no início do segundo mandato do presidente Lula? Continuar à frente da autarquia não seria importante para aprofundar as mudanças que promoveu nos quatro anos e três meses de sua gestão?


Eugênio Bucci – Eu já havia anunciado, até mesmo publicamente, desde 2005, que não continuaria no cargo após o primeiro mandato. No final de 2002, após as eleições presidenciais, eu enxergava uma grande abertura, uma oportunidade para imprimir mudanças de cultura na comunicação de instituições públicas. As portas de transformação me pareciam abertas. Não sei se era uma visão sensata, mas o fato é que tive a sorte de contar com uma equipe de gente reconhecida, alguns com grande experiência e já consagrados, como Celso Nucci, Carlos Knapp, José Alberto da Fonseca, Henri Kobata, Pedro Frazão, Bruno Vichi, Roberto Gontijo, Gustavo Krieger e depois José Roberto Garcez, que ficou na presidência da Radiobrás após a minha saída, Flávio Dieguez, Helenise Brant, além de jovens jornalistas como Rodrigo Savazoni, André Deak, Aloísio Milani, Spensy Pimentel e outros, que me ajudaram a mudar o que foi possível mudar.


Mudamos muito. Tentamos melhorar os serviços prestados aos cidadãos. Do começo ao fim, trabalhamos sob a convicção de que o direito à informação de que cada brasileiro é titular tinha de estar acima das causas partidárias do governo. Em parte, conseguimos e o projeto foi reconhecido como sendo justo. Cumpri até o fim meu compromisso com o presidente Lula e entreguei o cargo no dia 31 de outubro de 2006. A minha saída, porém, tardou um pouco. Fiquei até o momento em que o presidente designou um novo ministro para a área, que foi Franklin Martins, com quem me entendi bem. Levei a ele o projeto de fusão da Radiobrás com a TVE, que ele levou adiante. Claro que ainda há mudanças necessárias. Há desafios. Mas a minha parte está feita.


Que balanço faz de sua passagem pelo governo e de ter trabalhado numa área tão estratégica quanto a comunicação? Qual sua maior alegria e a maior frustração?


E.B. – Não me arrependo de ter ido para a Radiobrás. Não me arrependo de ter permanecido por quatro anos, três meses e vinte dias na função. Não me arrependo de ter saído quando foi a hora. Aprendi muito, mas muito mesmo. Sou grato por isso. Acho que a minha maior alegria foi constatar que é possível, numa empresa pública, informar o público de modo objetivo, sem permitir que as pressões partidárias contaminem o noticiário. O governismo, no meu modo de ver, é um partidarismo ainda mais grave, é um partidarismo com agravante. Conseguimos varrer os piores vícios do governismo na Radiobrás. Às vezes, escorregamos, e quando isso aconteceu tentamos reconhecer os erros e corrigi-los publicamente.


A maior frustração foi não ter conseguido mudar o regime de obrigatoriedade de transmissão da Voz do Brasil, um tipo de comunicação oficial que, além de anacrônico, é ridiculamente inútil. Cheguei a defender publicamente a flexibilização do horário obrigatório, ao lado do então presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo. Não adiantou nada.


Você se auto-impôs uma quarentena quando saiu da Radiobrás. Por que o fez e para que lhe serviu o período de recolhimento?


E.B. – Só agora estou saindo desse isolamento. Um período de silêncio que me fez bem. Embora a lei não exija quarentena para o cargo que ocupei, senti que incorreria em alguma ordem de conflito de interesses se assumisse alguma outra função imediatamente. Eu me sentiria melhor se desse um tempo. E foi o que fiz. Depois, eu queria trabalhar em alguns textos que tinha deixado pendentes. Este, sobre o dever da liberdade, que o Observatório passa a publicar a partir de hoje, em quatro capítulos, é um desses trabalhos. Aproveitei o tempo para isso.


O tempo em que esteve na Radiobrás coincidiu com o incremento da popularização, no Brasil, das tecnologias de informação e comunicação e com a maior relevância do público (leitor, ouvinte, telespectador, internauta) como personagem atuante – muitas vezes protagonista – no processo da comunicação. Como, e com que resultados, as novas mídias foram incorporadas pelo jornalismo praticado na Radiobrás?


E.B. – Essa pergunta vem a calhar, porque nesse meu texto, ‘A imprensa e o dever da liberdade‘, que é publicado agora pelo Observatório, não trato diretamente das novas tecnologias. Nele, eu me concentro no papel do jornalista, qualquer que seja o suporte, como dizem, se papel, internet, televisão, rádio. Tento frisar o dever de ser livre. Alguns afirmam que com as chamadas ‘novas mídias’ o lugar convencional do jornalista se dilui, e que surge uma espécie de parceria entre o profissional e o cidadão leigo na condução da reportagem, pois todos podem atuar na rede de computadores, online, ao vivo, no calor da hora. Do ponto de vista das possibilidades técnicas que alargaram os alcances da interação entre os sujeitos – as redes independentes, as manifestações na internet, os blogs e assim por diante – isso é verdadeiro. Mas, do ponto de vista do zelo que o profissional da imprensa precisa ter em relação à independência, garantindo confiabilidade para os relatos que leva a público, não houve alterações, embora na superfície tudo se mostre meio embaralhado. Ao contrário, a independência, nesse contexto, é mais crucial do que antes.


No texto, procuro falar sobre a atualidade do tema da independência. É verdade que, em matéria de novas tecnologias, a nossa experiência na Radiobrás avançou consideravelmente, apesar da escassez de recursos. Por exemplo: a Agência Brasil, sob a chefia de Rodrigo Savazoni, inaugurou, em junho de 2006, um novo projeto gráfico e uma nova plataforma, inteiramente baseada em Creative Commons, um novo regime de compartilhamento de conteúdos, criado por Larry Lessig, de Stanford. A Agência Brasil foi uma das primeiras a adotar esse protocolo no Brasil, em linha com as grandes modificações que o ambiente da comunicação vem sofrendo.


A propósito, há um bom livro, The Wealth of Networks, de Yochai Benkler, de Yale, ainda não traduzido no Brasil, que reflete com precisão e originalidade sobre esses novos cenários. O livro vem sendo debatido numa seqüência de seminários, no Instituto de Estudos Avançados da USP, que são coordenados pelo professor Imre Simon. A Agência Brasil está familiarizada e sintonizada com essas novas idéias. Abrir os conteúdos, estabelecer links horizontais com outros portais, sites e blogs são desafios que contaram, no Brasil, com o pioneirismo de equipes da Radiobrás. Rodrigo Savazoni e André Deak, um outro jornalista da Agência, já trataram disso em artigos publicados no Observatório da Imprensa [ver ‘Notas sobre a construção de um jornalismo livre‘ , ‘Nova prosa para novas mídias‘ e ‘O bom e velho jornalismo está morrendo‘]. O resultado do trabalho que eles realizaram não poderia ter sido mais animador. A Agência conquistou alguns prêmios de jornalismo – como aconteceu com outros veículos da Radiobrás – ao mesmo tempo em que abriu a sua produção para que outros a utilizassem com mais rapidez e flexibilidade, mas sem permitir que seu noticiário fosse capturado por interesses engajados do governo ou dos movimentos sociais. Ela manteve sua autonomia. Aprofundou-a. Inovou também no plano da linguagem. Algumas coberturas contavam com infográficos animados, com vídeos, com uma integração radical entre texto, som, imagem, design. Foi uma experiência bem satisfatória.


Como avalia a influência que a crescente interatividade e a possibilidade ampliada de acesso a fontes alternativas de informação têm exercido sobre a atividade jornalística? O jornalismo brasileiro, impresso e eletrônico, tem dado conta de acompanhar essa nova realidade?


E.B. – Com a internet, o cidadão opina e interfere sobre o noticiário a quente. Ele tem oportunidades para entrar no noticiário. Com isso, claro, a rede de fontes potenciais também se amplia, o que nos traz uma razão a mais para se fugir daquele vício antigo de entrevistar sempre a mesma meia dúzia de fontes para os mesmos assuntos. Em nosso programa de qualidade editorial, liderado por Celso Nucci, procurávamos exigir pluralidade e qualidade em matéria de fontes, para além do lugar-comum. Acho que vale mencionar que adotamos parâmetros éticos e editoriais, oficiais e públicos – nós os publicamos na internet –, que proibiam o uso de informações em off. Fora isso, a Agência Brasil inaugurou, no início de 2007, a coluna do ouvidor, que é o jornalista Paulo Machado. Com base nas opiniões dos chamados internautas, ele escreve semanalmente uma crítica pública do trabalho da Agência. Para suas avaliações, ele pauta pelos parâmetros do conjunto dos documentos oficiais da Radiobrás, como os planos editoriais e os padrões éticos de objetividade e apartidarismo.


Uma crítica corrente ao desempenho da mídia no Brasil é a de que os meios de comunicação, sobretudo a dita ‘grande mídia’, têm-se comportado mais como partidos políticos do que como instâncias promotoras do interesse público. É perceptível, ademais, certa compulsão em desqualificar a mídia como instrumento da democracia. Qual o sentido disso? O fato de a mídia pouco discutir a si própria contribui para distorcer as avaliações correntes sobre seu papel na sociedade?


E.B. – De fato, a ‘crítica de mídia’ está virando um esporte nacional entre nós. O que é bom, apesar de alguns momentos quase humorísticos. Faço apenas um ou dois comentários. O primeiro, diz respeito ao método. A expressão ‘a mídia’ talvez seja ampla demais e nos conduz a uma generalização pouco eficaz. Mesmo a expressão ‘a grande mídia’ não é útil nesse sentido. O segundo diz respeito ao que há de positivo quando a imprensa discute a imprensa. Eu diria que todo veículo jornalístico tem a ganhar quando debate publicamente os seus procedimentos, da maneira que lhe for mais adequada. Nisso, é possível que ainda tenhamos que avançar um pouco mais no Brasil. Quanto ao resto, o primeiro dever do jornalismo é ser livre. Ser explicitamente livre. Para começar, ele precisa ser livre do governo, qualquer governo. Nessa matéria, chamo atenção para um ponto sobre o qual temos falado pouco: o grande volume de verbas públicas que vão parar nos veículos comerciais como anúncios publicitários é um fator preocupante. Nos órgãos de imprensa mais vulneráveis, esse dinheiro – ou a sua ausência – pode ser uma pressão sobre a linha editorial. Esses recursos tendem a congregar um conjunto de veículos que se afinam em demasia com as causas dos governos – federal, estaduais ou municipais –, o que é algo tradicional no Brasil e não é nada saudável.


De minha parte, eu me sinto mais tranqüilo com uma imprensa que às vezes pode até cometer excessos, mas os comete com franca independência em relação aos governos, do que me sentiria com uma imprensa toda ajuizada que sempre apoiasse os governantes. Claro que a imprensa deve ser elegante, equilibrada, justa, objetiva etc., ao menos do meu ponto de vista, mas seu primeiro dever é ser independente. Financeira e editorialmente. Se alguns veículos querem bancar partidos políticos, desde que não o façam com dinheiro público, e desde que não sejam objeto de concessão pública, como é o caso das emissoras de rádio e TV, estão no seu direito. Se carregarem nas tintas, se distorcerem, cedo ou tarde perderão credibilidade e pagarão por isso.


É indiscutível que a mídia exerce um papel central nas sociedades contemporâneas e, também por isso, tem o poder de pautar agenda pública. Esta constatação implica a sugestão de que a este poder deva corresponder um contrapoder, e que a atividade dos meios de comunicação deveria ser submetida a algum tipo de regulação. Como isso poderia se dar? Quem deve vigiar o poder exercido pela mídia, e como?


E.B. – O público deve vigiar a mídia. As associações da sociedade civil devem fazê-lo. Os partidos políticos, os acadêmicos, os jornalistas, os sindicatos, os próprios meios de comunicação devem vigiar a mídia. Quanto mais debatida publicamente, melhor é a imprensa. O Estado e o governo têm que ficar fora disso. Eles precisam ficar longe de qualquer tentação de vigiar ou de regular o conteúdo dos noticiários. Se desobedecem esse protocolo tácito que é um pressuposto da democracia, agem mal. As autoridades devem explicitamente afastar qualquer aparência de que querem vigiar a imprensa. A velha fórmula continua válida: a imprensa vigia o poder; jamais o contrário. Claro que isso vale não apenas para o poder político, mas vale também para o poder econômico e também para o poder concentrado nos meios de comunicação: a imprensa deve vigiá-los. Acima de tudo, porém, a velha fórmula vale para o poder político. É em relação a ele que o dever da liberdade começa.


O desenvolvimento dos meios de comunicação e o aprimoramento do jornalismo deram-se em concomitância com a consolidação dos valores universais da democracia. Concorda que uma mídia – e uma atividade jornalística – atuante e crítica é condição sine qua non para a sobrevivência de uma sociedade democrática? Como avalia as críticas acerbas de importantes atores sociais à atuação da mídia que temos?


E.B. – Concordo integralmente com a assertiva da pergunta. Sobre as críticas que são feitas por atores sociais à imprensa, são da normalidade. Devem ser debatidas em público. Quanto mais, melhor.


A decisão do governo federal de construir uma rede de TV pública suscitou a convocação de um inédito Fórum Nacional das TVs Públicas, derivou para o processo de preparação de uma Conferência Nacional de Comunicação e, de algum modo, ajudou a ampliar a discussão sobre a democratização das comunicações no país. Qual o futuro da comunicação pública no Brasil? Como uma TV pública pode contribuir para a disseminação do debate sobre o direito à informação numa sociedade tão desigual como a nossa?


E.B. – Uma única palavra sintetiza o desafio desse momento: independência. Trata-se de saber se as emissoras públicas serão mais independentes a partir de agora, após o Fórum Nacional de TVs Públicas – que, aliás, fez da independência a sua principal palavra de ordem – ou se permanecerão no atual estágio de governismo, que ainda é a regra, sem prejuízo das meritórias exceções. Depois, o outro desafio é a austeridade administrativa. Ineficiência, cabides de emprego, essas coisas não podem mais acontecer. Remover as velhas práticas é trabalhoso, mas é possível.


A sociedade precisa de emissoras de comunicação pública, não-comercial. Nas principais democracias é assim que se estrutura o espaço público. Há um equilíbrio entre a comunicação comercial e a comunicação pública. A pauta, o repertório, a lógica de uma e de outra não se confundem – ou, melhor, ambas não deveriam se confundir. Quando a rádio ou a televisão pública apenas copiam, e de modo rebaixado, o que as comerciais já fizeram antes, tornam-se irrelevantes e descartáveis. No Brasil, ainda padecemos disso. A comunicação pública só irá vingar entre nós se for independente, tanto dos governos quanto dos mercados, se for gerida com austeridade, se for uma escola para novas linguagens, se encontrar sua especificidade insubstituível. Isso é possível, mas ainda falta muito chão.


Algo que não disse nesta entrevista e gostaria de ter dito?


E.B. – Creio que tudo me foi perguntado.