Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O mito do jornalismo livre e independente

Em maio deste ano, em mais um dos incontáveis relatórios, discussões e debates a respeito da importância da liberdade de imprensa para o chamado ‘exercício pleno da democracia’, a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) destacou a necessidade e a importância do jornalismo livre e independente como prerrogativa essencial do regime democrático.

O tema é recorrente e permanece rigorosamente atual no Brasil, 19 anos depois de encerrado oficialmente o período do regime militar no país (1964-1985). A cada eleição, uma leitura crítica dos jornais nos coloca diante dos mais acabados exemplos de como é falaciosa a defesa da ‘liberdade de imprensa’ tal como esta existe aqui. A abordagem do processo eleitoral brasileiro pela chamada ‘grande imprensa’ demonstra o quanto é preciso evoluir para que o país contemple princípios desse tal jornalismo livre e independente, o que nos leva a concluir que ainda estamos muito longe da democracia que a Constituição de 1988 pretendeu instaurar, mas que está restrita à retórica, ao papel que ‘aceita tudo’.

Para medir, por exemplo, o quanto a imprensa paulista é ‘ independente’, ‘livre’ e ‘democrática’, basta acompanhar os dois diários mais tradicionais de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país. Abrindo as edições de sábado (dia 9/10), quando este texto foi escrito, fica fácil. Começando pela Folha de S.Paulo e pelas fotografias (‘uma imagem vale mais do que mil palavras’).

Na na capa vemos uma foto horizontal em que estão o presidente Lula e a candidata Marta Suplicy, do PT. A foto escolhida mostra a prefeita paulistana não exatamente bonita, e com expressão severa, constrangida ou contrariada. Ela olha para um lado; o presidente, para o lado oposto. No meio, um vazio reforça a impressão de constrangimento. Logo abaixo, uma foto do mesmo tamanho mostra o candidato José Serra, do PSDB, recebendo o apoio do sindicalista Paulo Pereira da Silva ao lado do governador Geraldo Alckmin. Nesta foto, posada, todos sorriem, felizes. O governador, ao centro, reforça as idéias do Grande Irmão e da aliança.

No alto da capa, a manchete em uma linha: ‘Lula é multado por fazer campanha’. No miolo, à pág. 4, a matéria de abre intitulada ‘Eleição faz Marta e Alckmin manipularem o calendário’ (matéria neutra) e na pág. 5 (editorialmente mais visível que a anterior), novamente Paulinho e Serra, agora sem o governador, e o título grande: ‘Paulinho diz ter medo do PT e dá apoio a Serra’. O chamado ‘outro lado’ existe, claro; embaixo, pequeno: ‘Prefeita compara sindicalista a Regina Duarte’. Na pág. 6, o destaque é: ‘Ministério Público investiga trama contra Serra’ (que se torna vítima) e, na pág. 7, a matéria que ganhou chamada principal de capa: ‘Lula é multado em R$ 50 mil por apoio a Marta’.

A edição é tão favorável ao candidato tucano que se um estrangeiro caísse na capital paulista de pára-quedas, e alguém lhe dissesse que o jornal pertence a José Serra, o visitante não teria motivos para duvidar. É tão pró-Serra que tangencia a singeleza, mas evidentemente tem efeito sobre o público menos crítico ou menos atento aos interesses da mídia – ou seja, a maioria.

O Estado de S.Paulo do mesmo dia não fica longe, embora a capa seja de qualidade editorial melhor, como quase sempre. A foto principal, tão boa que merece ter o crédito citado (é de Paulo Liebert/Agência Estado), mostra a candidata Marta Suplicy observando o presidente Lula. Mas este não aparece; o que se vê, na parede atrás da prefeita, é apenas a sombra do presidente falando ao microfone. O efeito é subliminar. A manchete não refere eleições (‘Governo prepara programa nuclear pensando em vaga no Conselho da ONU’), mas a principal chamada de capa relacionada ao pleito municipal é ‘Justiça multa Lula em R$ 50 mil por pedir voto’.

Seguem-se os destaques: à pág. 4, ‘Lula leva multa de R$ 50 mil por pedir votos’; na pág. 5, ‘Marta formaliza pedido de apoio a Maluf’ e, abaixo, menor, ‘Fita mostra malufista tentando incriminar Serra’ (novamente, o candidato tucano é vítima); na pág 8, ‘PT com poder demais faz mal, diz Paulinho’, texto este ilustrado por uma foto triunfal de Serra, Paulinho e o governador, ladeado pela coluna de Dora Kramer, que, com a ironia costumeira, ressalta as brigas internas do PT. Completando o coquetel, na pág. 9, foto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como se de repente surgisse de um túnel do tempo obscuro, com dedo em riste (denotando autoridade), ilustra a matéria intitulada: ‘Para FHC, eleição serve como alerta aos petistas’.

Ninguém em sã consciência discorda da importância fundamental da imprensa livre e da liberdade de expressão para um regime democrático de fato. Acontece que, no Brasil, o que conhecemos como ‘liberdade de imprensa’ não tem nada a ver com o direito do cidadão de receber informações independentes e imparciais, nem tampouco com a liberdade de expressão do jornalista propriamente dito. O direito, na prática, se restringe ao direito de os donos de jornais fazerem o jornalismo que quiserem, a favor de quem e do que bem entendem. O cidadão? Ora, o cidadão.

A Constituição Brasileira, em seu artigo 1°, inciso IV, contempla ‘os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa’ como um dos fundamentos da República. Os da iniciativa privada estão plenamente protegidos, no país. Mas os valores sociais do trabalho, como se sabe, não. A chamada Carta Magna diz ainda, em seu artigo 5°, inciso IV: ‘é livre a manifestação do pensamento’, e inciso XIV: ‘é assegurado a todos o acesso à informação’. Será?

Função ignorada

Dada a realidade que se nos mostra cotidianamente, tal coquetel de direitos não parece referir-se ao Brasil, mas à Suécia. Democraticamente, a Constituição de 1988 consolidou o pensamento liberal e a propriedade. O que não se discute, já que a maioria da Assembléia Constituinte é soberana, na democracia. Não se pode negar que os jornais são privados num país cuja Lei Maior estabelece como fundamento o valor da livre iniciativa. É indiscutível.

Outras cláusulas pétreas, que não se discutem, são a que garante, no artigo 220, proteção à ‘manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação’ e a que veda ‘toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística’. Ambas somam-se ao parágrafo 1° do mesmo artigo: ‘Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística’. O problema é: o que fazer com um arcabouço constitucional que, em grande parte, se restringe ao papel?

A Constituição brasileira surgiu em um momento histórico muito específico: foi o resultado da reação democrática (com o perdão do trocadilho) a duas décadas de autoritarismo. Assim, ela contemplou conceitos e direitos de forma prolixa e vaga, ao ponto de um dos pensadores principais da ditadura, o economista Roberto Campos, ter dito sobre ela: ‘Utópica no social, indecisa no político e intervencionista no econômico’. Campos não mencionou, porém, que, em alguns aspectos, nossa Constituição é uma via de mão única. O que fica expresso pelo teor do inciso XXIII do artigo 5°, que garante: ‘a propriedade atenderá a sua função social’. Como sabemos todos, na prática, o direito à propriedade está garantido. Mas o princípio segundo o qual ‘todos são iguais perante a lei’, não.

Analogamente, a função social da propriedade representada pelos veículos de comunicação é completamente ignorada. Segundo os parâmetros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, ‘uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre’. No Brasil, e particularmente em São Paulo, estamos muito longe de viver numa sociedade plenamente livre.

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Jornalista