Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O papa falhou

O Vaticano precisa contratar urgentemente uma consultoria em gestão de crise. O persistente noticiário sobre escândalos sexuais e pedofilia envolvendo sacerdotes católicos representa um típico caso de má administração das relações com a imprensa.


O último episódio, que se reflete no amplo noticiário de sexta-feira (16/4) na imprensa internacional, tem como motivador o próprio sumo pontífice, o papa Bento 16. Quando vem a público convocar os católicos a fazer penitência e reconhecer os erros cometidos, o papa abre nova oportunidade para a mídia rememorar os muitos casos de abusos cometidos na relação entre orientadores religiosos e seus fiéis.


O manual da boa gestão de crise em comunicação ensina que a autoridade máxima só deve se expor no momento de anunciar uma solução definitiva para o problema, nunca se apresentar em meio ao tiroteio e jamais personalizar os aspectos negativos do episódio. O Vaticano costuma chamar o ambiente externo à igreja católica de ‘o mundo’. Foi com essa expressão que Bento 16 se referiu à onda de denúncias de pedofilia.


Em vez de sensibilizar a imprensa, porém, a manifestação do pontífice provoca ainda mais críticas e faz recrudescer as citações dos casos de abuso já noticiados. Ou seja, em vez de amenizar a crise que afeta a reputação da instituição, ele acirra ainda mais as críticas.


Declaração improvável


Especialistas citados pelos jornais chegam a afirmar que, ao pedir aos católicos que façam penitência pelos erros cometidos, o papa estaria tentando transferir para toda a igreja a responsabilidade por decisões que ele mesmo tomou, ao proteger sacerdotes acusados de pedofilia.


Manifestações públicas na Alemanha e nos Estados Unidos refletem o descontentamento de vítimas e seus parentes com a condução que o Vaticano tem dado ao escândalo. Em vez de punir os sacerdotes acusados, dizem representantes das vítimas, a igreja prefere se esconder através de sofismas. Os manifestantes exigem que o papa use diretamente expressões como ‘padre pedófilo’, ‘crimes contra crianças’ e ‘bispos cúmplices’.


Dificilmente haverá uma declaração oficial da igreja nesses termos. Mas, enquanto isso, um bom gestor de crise recomendaria blindar a figura do papa.


Crise de relacionamento


Complementando o noticiário internacional, centrado na declaração do papa recomendando penitência aos católicos, os jornais reforçam a convicção de que, diante do agravamento das denúncias de pedofilia, a igreja preferiu tirar de cena os acusados em vez de resolver o problema.


Segundo informam as edições de sexta-feira (16) dos jornais, reproduzindo reportagem distribuída por todo o mundo pela agência Associated Press, dezenas de sacerdotes acusados foram transferidos para outros países e seguiram trabalhando com crianças e adolescentes. Alguns deles teriam sido enviados ao Brasil e pelo menos um deles passou a trabalhar com meninos indígenas, considerados ainda mais vulneráveis.


O levantamento da Associated Press, realizado em 21 países, revela claramente a estratégia das autoridades católicas, de simplesmente retirar de cena os acusados, mandando-os para longe com a intenção de abafar os escândalos. A declaração do papa Bento 16, encaixada nesse noticiário, agrava ainda mais a crise de relacionamento com a imprensa.


Ponto de ruptura


Em várias partes do mundo, representantes do clero começam a se manifestar em defesa de colegas acusados, o que pode produzir uma quebra na rigorosa hierarquia eclesiástica. Na falta de explicações e de investigações sérias, os padres acusam a imprensa de estar atuando contra a fé católica. Por outro lado, teólogos respeitados começam a questionar a liderança de Bento 16, agravando o risco de ampliação da crise na igreja.


O teólogo alemão Hans Küng divulgou carta aberta na qual avalia que a estratégia de encobrir os crimes de pedofilia foi arquitetada pelo próprio cardeal Ratzinger, quando ainda era o responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé, antes de se tornar o papa Bento 16. Küng conclama os bispos a convocar um concílio para discutir a crise e estudar uma reforma na igreja. Nesse ponto, dizem os jornais, a crise deflagrada pela revelação dos abusos praticados por sacerdotes pode evoluir para uma situação das mais graves na história do Vaticano.


Além de retratar a grave crise, o noticiário também marca um momento de ruptura e de independência da imprensa dos países majoritariamente católicos, historicamente subserviente aos interesses da igreja.