Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O papel do jornal na sociedade

Quando acordaram há 60 anos, naquela manhã de 30 de junho de 1945, os moradores de Nova York se depararam com uma inesperada notícia: Não havia notícias.


Como assim? Afinal, aquele parecia ser um ano histórico: bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki; na Iugoslávia, vencidos os alemães, os vencedores matam-se entre si e Tito implanta o comunismo; em Berlim, o suicídio de Hitler; nazistas são julgados pelo Tribunal de Nuremberg; criação da ONU e do FMI… (Enquanto isso, no Brasil, afora a deposição de Getúlio Vargas, vai-se mesmo de letra e música: Drummond publica Rosa do Povo e Villa-Lobos termina suas Bachianas Brasileiras).


E agora? Bom, pelo menos para os moradores que fossem leitores dos oito principais jornais diários da maior cidade dos Estados Unidos, a solução seria a busca de fontes alternativas de informações. Porque durante aquele dia – e por pelo menos as duas semanas seguintes – seus jornais locais preferidos não chegariam à sua casa nem ao local de trabalho nem estariam disponíveis nas bancas: os entregadores declararam sua própria guerra e entraram em greve.


Foi aí que Bernard Berelson teve um estalo e, com outros pesquisadores, durante aquela estiagem de notícias, resolveu perguntar aos habitantes de Nova York ledores de jornais como é ficar sem eles, que falta os jornais lhes faziam.


O fascínio maior


Para qualquer lado que se vire, o jornal encontra quem o critique. Como o mais clássico – e o mais charmoso – representante dos meios de comunicação de massa, o jornal paga até hoje o preço que pioneirismos cobram – o qual nem os discursos de pretensa independência e tampouco a prática de denúncias contra ‘os poderosos’ conseguem quitar. Isto porque, ao longo da História, jornais vieram-se impregnando de um vício de origem: relações de mal disfarçada dependência com pessoas ou instituições que detêm poder, seja este econômico, político ou sociocultural. Ou todos eles. Foi assim na antiga Roma, com a cinco vezes centenária Acta Diurna, que nasceu ligada ao imperador Júlio César. Foi assim no Brasil, com a Gazeta do Rio de Janeiro, o primeiro jornal feito no país, criado em 1808, por obra e graça de Dom João 6º, e convenientemente substituído, catorze anos depois, por um Diário do Governo.


Hoje, os jornais brasileiros autoproclamados independentes parecem ser, para muitos, rebeldes sem causa. Têm uma responsabilidade, os jornais? E, se têm, qual é? Quem definiu essa responsabilidade? Está afinada com o que pensa, quer e age a sociedade? É uma responsabilidade ativa, que provoca, ou passiva, que reflete? Está a serviço das causas de um governo, como na ex-União Soviética, ou de um mercado, como nos Estados Unidos?


Muitas das vezes, acreditando-se uma instituição com fim determinado e causas nobres, o jornal, no dia-a-dia, está funcionando como instituição intermediária, de cujos recursos e possibilidades se utilizam outras instituições para comunicar, e exercer, seu poder na sociedade. A constatação não seria nenhuma novidade. Durante séculos assim o fez a Coroa inglesa, para promover os interesses do Estado – o direito divino do rei. Também, a Igreja, para manter sua supremacia – o direito do rei divino.


De todos os veículos de comunicação, o jornal impresso é o que exerce maior fascínio e, para alguns, maiores preocupações, embora não tenha a velocidade, instantaneidade e penetrabilidade dos meios eletrônicos – a televisão, o rádio, a internet.


Agir local


O Estado e o poder econômico normalmente desenvolvem um humor ciclotímico em relação à função informativa dos meios de comunicação de massa, especialmente dos jornais. Dão a impressão de que, no fundo, querem todos os jornais ao seu lado o tempo todo. Mesmo quando discursam acerca da necessidade da crítica e da denúncia responsáveis, parecem fazê-lo a contragosto.


Não raro a História tem registrado o câmbio de visão e de procedimento de grupos que lutavam contra o poder, e tinham no jornal um grande aliado – os quais, uma vez tornando-se o poder, viam no mesmo jornal o maior inimigo. Os monarcas e os puritanos ingleses, os federalistas na Revolução Americana e os comunistas em diversos países praticaram, alternadamente, o que antes criticavam: o controle rígido dos jornais e, pior, sua transformação em instrumentos auxiliares de implementação da nova ordem política que pregavam.


Atualmente, isso parece ser ‘estimulado’ (incredibile dictu) por uma ainda não devidamente consensada, fixada, responsabilidade que o jornal teria ante a sociedade. Ou, em palavras bem próprias, o papel do jornal.


Entretanto, seria recomendável que, antes de definir o que ele é (i. e., seu papel), o jornal se perguntasse para quem ele quer ser. Por exemplo: É verdadeiro que o jornal serve mesmo à sociedade ou somente aos que o lêem – e, naturalmente, por osmose, aos que, de alguma forma, são sensibilizados pelos conteúdos que o jornal disponibiliza?


A resposta não parece fácil. Uma abordagem pragmático-estatística (seja lá o que isso queira dizer!) poderia afirmar que o jornal exerce seu papel (aqui ainda não definido) somente junto aos seus leitores. Argumentaria que o jornal não serve à totalidade da sociedade onde está presente, pois esta inclui os que não sabem ler, os que sabem e não se dão a esse ‘luxo’ ou, ainda, por razões econômicas ou geográficas, não têm acesso às fontes de leitura, entre elas o jornal.


Uma outra abordagem defenderia que, para que a sociedade seja servida pelo jornal, não é obrigatório – embora seja desejável – que todas as pessoas que a constituem o leiam. E exemplificaria que a campanha para instalação de uma nova indústria, ou para a aprovação de uma determinada lei, pode ser reforçada pelo jornal, daí podendo resultar ganhos sociais não previstos na tal abordagem pragmático-estatística.


Isto posto, sem querer simplificar nem esgotar o assunto, poder-se-ia resumir que, acerca de quem é o público-alvo do jornal, ele é, efetivamente, a sociedade: o jornal pensaria na coletividade dos indivíduos ainda que agindo na individualidade dos leitores. Ou, na linguagem da contemporaneidade: pensar globalmente, atuar localmente, ou localizadamente.


Colunas resistentes


Estabelecido que o jornal serve à sociedade, resta definir qual o papel do jornal junto a ela. O jornal tem um interesse próprio, algo que só a ele seja peculiar? Ou é ele uma entidade mediadora das demais forças sociais? Ou, dependente, é tão-só um office-boy de instituições política, econômica e culturalmente mais poderosas que outras? Ou, ainda, historiador do efêmero, comporta-se como secretário ad hoc do tempo, a lavrar as atas do quotidiano? É um informante, um intérprete, um persuasor? É agente ou usuário? É sopro que vivifica ou soporífero que entorpece?


Jornais e jornalistas têm pregado que é sua missão a defesa da liberdade e a busca da verdade. Estariam tentando dizer que o relato dos casos do dia-a-dia esconde/revela uma causa histórica, transcendental, sagrada, sempiterna?


Talvez o papel do jornal não esteja ainda sendo corretamente interpretado no teatro social. Talvez falte ao jornal dar mais voz a mais personagens. É necessário cidadanizar o jornal. Provocar mais o cidadão comum. Prestar-lhe mais serviços.


O veículo jornal deve percorrer, ou criar, novos caminhos: em vez da mão única que transporta as decisões do poder até o povo, optar pela via preferencial que leva a voz do povo até os ouvidos do poder. Caso contrário, a sociedade corre o risco de ser governada por entes virtuais, não-presenciais, seres cujos contornos só são conhecidos pelo que é dado para consumo nos meios de comunicação de massa.


O jornal serve tanto para fazer poder quanto para poder fazer. Em um aspecto, como agente do poder, amarra o cidadão e escurece-lhe as vistas. No outro, com o poder de agente, desfaz-lhe os nós e faz-se-lhe a luz.


O papel do jornal assume importância crescente. Ao final das pesquisas realizadas em Nova York, em 1945, as respostas conduziam para uma leitura: a ausência de jornais era percebida pelos leitores, individualmente, como uma perda. Hoje, é quase certo, a percepção assumiria caráter coletivo. E, embora outros meios atualmente possam suprir eventuais suspensões de circulação, os leitores continuariam a esperar que o jornal pudesse trazer, na manhã de hoje, organizadinhos em colunas, os fatos e opiniões que na noite de ontem estiveram circulando meio caoticamente no éter das transmissões eletrônicas.


Se o papel do jornal na sociedade ainda não parece ter sido definido substantivamente, não há dúvida de que já o foi no aspecto adjetivo: qualquer que seja o papel, repita-se, ele é importante. Historicamente, apesar de disfunções havidas e ainda existentes, esse papel foi essencial. Pois se a construção da sociedade, como a queremos hoje e como a pretendemos amanhã, tem repouso nos pilares da democracia, esta, por sua vez, se estruturou em colunas igualmente resistentes: as colunas do jornal.

******

Jornalista e consultor, Imperatriz (MA)