Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O parajornalismo e o escândalo

As fotografias oficiais do jantar promovido pelo empresário Ivoncy Ioschpe em São Paulo, realizado na mesma sexta-feira, dia 19, em que o ministro Antonio Palocci foi colocado no centro do escândalo político, mostram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na biblioteca da residência, cercado por uma grande quantidade de convidados. Num salão próximo, é claro o isolamento do governador paulista, Geraldo Alckmin, na companhia de assessores. O presidente contou piadas, garantiu que Palocci continua ministro, enquanto Alckmin recebeu cumprimentos e se manteve durante quase todo o tempo relativamente isolado.

Esse é o retrato verdadeiro do evento, que comemorava a posse do novo presidente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Josué Gomes da Silva, presidente da Coteminas e filho do vice-presidente José Alencar, que também compareceu. No entanto, colunistas sociais, como a titular da Folha de S. Paulo Mônica Bérgamo, publicaram exatamente o contrário. E um número não determinado de jornais do interior e sites noticiosos repetiu a versão, dando conta de um isolamento do presidente que não aconteceu, nem faria sentido – uma vez que, justamente naquela sexta-feira, o mercado se havia agitado com as acusações do advogado Rogério Buratti ao ministro da Fazenda e era natural que a presença de Lula atraísse a atenção dos empresários convidados ao jantar.

Na semana passada, uma nota publicada por um controvertido personagem da internet chamado Evaldo Fenerich, dando conta de que o presidente Lula estaria planejando uma festa para seu filho na Granja do Torto, com animação do disc-jóquei Tiesto – celebridade no mundo da música eletrônica – foi reproduzida no dia 25, quinta-feira, pelo colunista César Giobbi, no Caderno 2 do Estado de S. Paulo, e pelo jornalista Gilberto di Piero, conhecido como Giba Um. ‘Pelo visto, o presidente Lula não está nem um pouco preocupado com a opinião pública. Está armando uma rave particular, na Granja do Torto…’, afirmava Giobbi.

Sinais do anacronismo

A barriga foi desmascarada no mesmo dia pelo blog Kibe Loco! [ver a rubrica Feitos & Desfeitas, nesta edição] e, no dia seguinte, o colunista saiu-se com uma nota intitulada ‘Outra informação’, na qual dizia que ‘O site do DJ Tiesto, que até na tarde de quarta-feira apresentava um show na Granja do Torto, em Brasília, no dia 11 de outubro, mudou de endereço na manhã de ontem. O que aparece, agora, é que sua apresentação será no Parque de Exposições da Granja do Torto. Bem diferente, não?’ Nenhuma explicação para as ilações tiradas na edição anterior, nenhum pedido de desculpas ao leitor, nem um sinal de que, na verdade, o jornal havia publicado um erro grosseiro, baseado em informação de fonte absolutamente não-confiável sacada da internet.

Erros, distorções, barrigadas, ‘plantação’ e desinformação fazem a rotina de riscos dos titulares das colunas de notas curtas da imprensa, que precisam diariamente se diferenciar entre si e se destacar do noticiário geral com informações exclusivas, às quais geralmente acrescentam seus comentários. Em meio à profusão de chutadores, os titulares das colunas sérias de notas políticas e econômicas correm o risco de serem colocados no mesmo patamar de irresponsabilidade, porque não há nas páginas dos jornais e revistas qualquer indicação de que esta ou aquela seção pode fazer mal ao entendimento. Para o leitor comum, dá no mesmo.

Colunas sociais e sessões de fofocas são próprias de jornais provincianos e, assim como as revistas de celebridades, revelam sinais do anacronismo da imprensa, pelo pressuposto de que a rotina dos endinheirados ou das celebridades tem um valor mais relevante em meio aos eventos sociais. À parte o mau vício de não se distinguir entre os protagonistas de suas crônicas o empresário bem-sucedido do mais rematado escroque, perpetua-se a aceitação do sucesso financeiro como paradigma de nobreza moral.

Linha auxiliar

Mais grave do que isso, porém, é o fato de que esse parajornalismo tem sido utilizado no presente escândalo que sacode a República como um instrumento adicional para consolidar na opinião pública as premissas que fundamentam as escolhas de edição, a seleção dos artigos e o teor dos editoriais. A presença, em todos os jornais e nas revistas semanais, de colunas e seções a cargo de palpiteiros, humoristas, comentadores ou meros provocadores, tem um aspecto comum: praticamente todos eles atuam como claque para a consolidação do viés político do veículo.

Do humorista José Simão ao garoto-problema Diogo Mainardi, proliferam em toda a imprensa esses personagens que não chegam a ser propriamente jornalistas, mas são tidos como tais pelo cidadão comum. Suas tiradas, suas blagues, a interpretação que dão à realidade se confundem com o conteúdo jornalístico e editorial, contribuindo para aumentar e aprofundar a manipulação do noticiário. Com raríssimas exceções, eles formam o coro dos contentes, donos privilegiados de espaços nobres enquanto cantarem na mesma toada dos chefes e patrões.

A rigor, pouco se sabe dos méritos específicos que os fazem titulares desses espaços na mídia, a não ser, claramente, o número de leitores que conseguem atrair – pelo senso de humor discutível, pela irresponsável arrogância com que tratam e destratam os protagonistas de seus escritos. Eles defendem seus privilegiados postos com a agressividade de verdadeiros pitbulls. Em geral, o produto de seu labor intelectual revela mais talento para o ‘impressionismo’ – aquele texto que, segundo Otavio Frias Filho, fala mais à emoção superficial – do que propriamente por qualificações do intelecto.

Na rotina, podem ser classificados no caminho que vai do entretenimento ao panfletarismo, e nisso têm seu valor específico. Distraem o leitor dos números da economia, da violência diária, dos revezes futebolísticos. Mas, quando se engajam como linha auxiliar do noticiário político, esses parajornalistas acabam por consolidar no leitor atento a impressão de que a imprensa brasileira recuou algumas décadas. Nenhum deles passaria à sombra de Ibrahim Sued, patrono de toda picaretagem na imprensa. Nenhum deles faria lembrar o Barão de Itararé, que nos ensinou a humildade de não levar excessivamente a sério a palavra impressa.

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Jornalista