Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O poder do missivista ‘com-título’

A desigualdade brasileira é tão grande, mas tão grande, que chega a se reproduzir — é de pasmar! —, até nos espaços midiáticos: no Painel do Leitor da Folha foi possível constatar, pesquisando as primeiras 30 edições do jornal em 2005, que é dominado por uma elite de missivistas, que classificarei como ‘com-título’ (aqueles cujos nomes vêm acompanhados de algum título, como presidente disso, diretor daquilo, senador, médico, economista etc., etc), em detrimento do missivista ‘comum’, que chamarei de ‘sem-título’.

A Folha, que pode ter recebido no mínimo umas 2 mil cartas de leitores este mês, publicou 221 textos no Painel do Leitor até 30 de janeiro, sendo 11 de pessoas que enviaram votos de boas-festas ao jornal, 99 cartas de leitores sem-título, 91 de leitores com-título e 20 respostas do jornal (tanto da Redação quanto de jornalistas) a cartas dos com-título – o que totalizaria, excluindo os votos de boas-festas, 111 textos ‘de elite’ contra 99 ‘comuns’. Isso, porém, se não fosse o fato de que muitas das cartas dos sem-título foram de autoria de pessoas eminentes que eximiram-se de apor título a seus nomes, como o banqueiro Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, que na sexta-feira (28/1) teve publicada uma carta que ocupou praticamente metade do Painel do Leitor. Além disso, as cartas dos com-título e dos ‘eminentes’ são quase sempre enormes, chegando a ser duas, três vezes maiores que as dos leitores sem-título.

Povo sem voz

Esse fenômeno não ocorre em nenhum outro grande jornal brasileiro, e provavelmente nem nos pequenos. Denota uma visão elitista da Folha, cujo critério de publicação de cartas de leitores evidentemente não é o da qualidade do texto ou o da força da idéia que contém, mas, sim, o de privilegiar aqueles que, por terem ‘titulo’, não têm o bom-senso de se manifestar de forma sucinta e objetiva, e que julgam que seus ‘títulos’ reforçam seus argumentos, idéias e opiniões.

Vale dizer que este leitor – que se abstém de apor algum título ao seu nome (o que até poderia fazer) por entender que o que vale não é quem se manifesta, e sim o quê manifesta – tem obtido relativo sucesso em ser publicado no PL – no mês de janeiro fui publicado uma vez, no dia 1º. Mas ocorre que eu, e tenho certeza de que a maioria do leitorado da Folha, apreciamos mais as cartas dos leitores ‘comuns’ por entendermos que os espaços que os jornais dedicam a seus leitores deveriam servir primordialmente a que o povo, e não preferencialmente a elite, se manifeste num país em que, na maior parte do tempo, quem tem voz é quem tem título.

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Comerciante, São Paulo