Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O ‘povo’ no perde e ganha da imprensa

A revista CartaCapital é hoje uma das principais publicações do Brasil de alinhamento à esquerda. O que esse periódico tem feito por meio da TV Carta, com vídeos bem editados e dirigidos (recurso também muito bem utilizado por outros periódicos mais alinhados à direita, caso da TV Estadão), é colocar em pauta assuntos efetivamente caros à esquerda e que, em alguns casos, deixaram de ser contemplados pelo governo federal, que também tem sido, de vez em quando, posto no alvo das críticas do periódico. Cotas para negros em universidades públicas e garantia de direitos ao trabalhador talvez sejam as causas mais emblemáticas das últimas semanas. Ou seja, não está em discussão a importância do trabalho que a Carta tem feito, pois ele é legítimo e necessário.

O ponto de incômodo talvez esteja na repetição de algumas estratégias jornalísticas que se assemelham em demasia aos periódicos a que a própria Carta se opõe. Refiro-me a títulos-manchetes como o da matéria de André Barrocal, intitulada “Terceirização: Eduardo Cunha sofre primeira grande derrota” (ver aqui).

A matéria transcorre no tom adequado, mostrando, inclusive, que para as próximas semanas podemos esperar um desajuste entre as centrais trabalhistas – que defenderam o mesmo lado do governo federal na tentativa de barrar a votação da lei de terceirização – e o próprio governo federal, dado que este sancionou no final de 2014 leis que também depõem contra o trabalhador. O problema é o título-manchete que, à maneira das publicações alinhadas à direita, parece transformar o debate político em uma grande partida de futebol.

Ponto saudável

Sabemos que o embate político se alimenta sim dessas estratégias de incutir vitórias e derrotas na cabeça do leitor e do ouvinte (como naquelas entrevistas pós-debates eleitorais em que todos são orientados a dizer que venceram). Sabemos também que perder e ganhar faz parte da construção democrática. Mas daí a imprimirmos um tom de jornalismo esportivo ao jornalismo político – prática antiga já no Brasil – não me parece instrutivo e muito menos inovador num cenário em que a maior parte da população não demonstra conhecer os trâmites de um regime democrático. E mais, se a maior parte da população desconhece os trâmites do regime democrático, isso se deve também à pouca instrução que a própria imprensa tem oferecido ao longo dos anos; justamente ao imprimir ao debate político uma dicção de perde e ganha, como se nós, leitores e povo, devêssemos nos acomodar na poltrona e escolher um dos times.

O ponto que mais merecia ser destacado na matéria da Carta era a vitória da pressão popular nas ruas e nas redes sociais, e não a derrota do presidente da Câmara. Perdeu-se mais uma vez a chance de fazer o povo protagonizar a política e o debate democrático. Pois, ao se destacar a derrota de Eduardo Cunha, personificou-se novamente o congressista conservador como protagonista do sistema. Essa personificação do debate político é ruim para a tomada de consciência da democracia. Não nos esqueçamos, para a saúde de um sistema democrático, é o povo quem deve protagonizar os embates. E mesmo quando o povo faz isso, indo às ruas e pedindo para que não se aprove a lei de terceirização, os jornais tratam de alimentar os mesmos personagens e dissentimentos de sempre.

Como uso de linguagem, o povo vencer é muito mais instrutivo para a democracia do que Eduardo Cunha perder. Pois se o povo começar e se ver como protagonista nos jornais e revistas, diminui as chances de termos de lidar com congressistas da estirpe do presidente da Câmara.

Outro ponto importante da matéria em destaque, no que respeita a possíveis articulações democráticas, foi a aproximação de PT e PSDB para pressionar a não aprovação da proposta de terceirização. Quando os dois partidos, que desencadearam a onda de incompreensão e ódio no país há cerca de um ano, se aproximam para um fim comum, que, neste caso, volta-se para o trabalhador, pouco se aproveita deste fato para fazer repercutir o tamanho do prejuízo que seria a aprovação da lei de terceirização no país. Ou seja, na pressa de apontar a derrota do congressista alavancado a personagem principal da política brasileira, perde-se também a oportunidade de mostrar o quão complexo é mexer nos direitos dos trabalhadores; complexo a ponto de fazer os dois polos que rivalizaram o Brasil no último ano atuarem, neste caso, do mesmo lado.

É imprescindível, e até certo ponto saudável para o debate, uma dada polarização dos periódicos e das editorias políticas, mas se levarmos a sério a finalidade desse empreendimento democrático, vencerá o lado que fizer de fato o povo protagonizar as manchetes e linhas principais da imprensa.

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Cristiano de Sales é professor de Comunicação Social