Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O presidente vai às cordas

A semana foi pródiga em elementos para a análise das escolhas da imprensa diante do grave escândalo que choca e envergonha o país. Em meio ao mar de lama, que balança como todos os oceanos, o noticiário parece produzir o mesmo efeito da lua sobre as marés. Não é sintoma de moléstia infantil do esquerdismo nem surto de paranóia conspiratória a constatação de que as manchetes sinalizam uma estratégia clara da mídia, que geralmente se explicita nos editoriais de fim de semana.

Essa estratégia consiste em manter o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no limite da governabilidade, para que chegue ao final do mandato sem qualquer cacife para tentar a reeleição – ou, se teimar em disputar o pleito, que chegue às urnas sem uma aliança que lhe dê competitividade no tempo de propaganda gratuita. A tática é preservar a figura do presidente da República, desde que ele se recolha ao Palácio do Planalto ou à residência oficial da Granja do Torto e espere em silêncio seu julgamento.

Toda vez que o presidente exercita sua vocação para animador de comícios, a maré de lama é empurrada para o pé da rampa do Planalto. Não é coincidência que todas as revistas semanais tenham encontrado motivação, numa semana que não trouxe revelações mais claras de envolvimento do governo, para estampar em suas capas indícios de
ligação direta entre o Executivo e o dinheiro sujo que brotava dos cofres do publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza.

Os indícios de envolvimento de outros partidos em práticas ilegais de campanha foram varridos rapidamente para baixo do tapete de letras, talvez porque a imprensa tenha comprado a tese do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de que os crimes eleitorais têm prazo de validade – e bastou ao presidente do PSDB, senador Eduardo Azeredo, um discurso de seis minutos para ganhar a inocência.

A imprensa brasileira nos faria um grande favor se demonstrasse de uma vez por todas que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é culpado em grau irrecorrível de crime eleitoral, de favorecimento ilegal, de formação de quadrilha, de enriquecimento ilícito, de corrupção, abuso de poder, quebra de decoro ou qualquer outro capítulo da lei que se aplique. Ou que se lhe conceda o alvará de soltura moral. O cenário com o qual o cidadão tem que contar para tirar suas conclusões é feito de muita fumaça, e não se pode adivinhar a intensidade real do fogo.

O objetivo parece ser cozinhar o presidente em fogo brando, abrindo ou reduzindo o gás conforme as conveniências. O Estado de S. Paulo continuou no vácuo das investigações oficiais, repetindo em editoriais que Lula joga gasolina na fogueira ao recair na prática dos comícios; a Folha de S.Paulo ainda credita ao atual presidente algum sinal de vida, enquanto O Globo se valeu do colunista Merval Pereira para afirmar que o mandato de Lula não será renovado em 2006.

A conclusão unânime da imprensa é de que o governo Lula apenas cumpre tabela. Merval Pereira afirma taxativamente que, para os tucanos, Lula não será o próximo presidente do Brasil. O Estadão há mais de três semanas dá o mesmo tom e a Folha colocou em campo seu diretor-executivo em Brasília, Valdo Cruz, que foi atrás de fontes do próprio governo para informar que o presidente só decidiu reavivar seus comícios depois de ter recebido garantias dos serviços de inteligência de que não há hipótese de, por vias normais, seu nome vir a ser associado diretamente à corrupção.

Versões manquitolas

A imprensa não engole Lula, Lula vai às massas porque não confia na imprensa. Não confia na imprensa porque, desde os tempos do ABC, se habituou à bajulação de repórteres que misturavam profissão com militância, e porque, nas chefias de redação, sempre foi tratado como um intruso que ousou subir da senzala para a casa grande sem ser convidado. Chegou ao poder sem contar com profissionais de comunicação que lhe soprassem ao ouvido que todo protagonista da mídia precisa aprender a conciliar suas premissas com as premissas da imprensa. Lula nunca aprendeu a lidar com jornalistas independentes ou com a oposição
da imprensa. Quando se sente acuado ou injustiçado, apanha o microfone e cai na tentação da comunicação direta com o público.

Mas não é apenas o horror a qualquer acontecimento político que escape à sua mediação que faz a imprensa reagir com veemência ao gosto do presidente pelo palanque. A mídia raciocina em linha e não é capaz de lidar com equações cujo resultado não seja visível no horizonte de uma edição. Precisa de uma pauta bem organizada, de referenciais predeterminados, do tipo que define a relação direta entre causa e conseqüência.

Um depoimento na CPI pode ser enquadrado nas premissas que formam o arcabouço do raciocínio nas redações, mas a relação direta do presidente com a massa ignara (a patuléia, a choldra, ou qualquer outro qualificativo desrespeitoso com que nos habituamos a ver tratado o povo) fica fora de qualquer controle. Apenas se pode pinçar algumas de suas frases, conduzir com elas o teor do noticiário, dar a elas uma interpretação conveniente.

Quem ouviu diretamente o discurso ao vivo ou pelo rádio fica fora do universo mediado.
A imprensa não admite que o eventual inquilino do Palácio do Planalto, seja Lula ou qualquer outro, se dirija diretamente à sociedade sem lhe pedir a bênção. Já era assim no tempo do presidente José Sarney, cujas conversas ao pé do rádio eram ridicularizadas pelos grandes jornais.

Muito mais razão tem a imprensa para execrar a discurseira do atual presidente, cuja biografia ainda causa arrepios a muita gente. Não é apenas no noticiário sobre o escândalo das malas de dinheiro que se manifestam essas premissas. A falta de elementos que ajudem o leitor a entender o contexto dos acontecimentos noticiados também produz versões manquitolas da realidade nos campos da economia, das relações internacionais, dos esportes e da maioria dos temas que enchem nosso dia-a-dia.

Tom ‘chavista’

Um exemplo: a visita do subsecretário do Tesouro americano para Assuntos Internacionais, John Snow, iniciada segunda-feira da semana passada (1/8), foi noticiada no Brasil como uma ação deliberada de apoio dos Estados Unidos ao governo do presidente Lula da Silva. De fato, antes de Snow desembarcar em Brasília, o Departamento do Tesouro havia distribuído nota oficial afirmando que a visita tinha o caráter explícito de ‘destacar o avanço da economia brasileira nos últimos anos’. Snow fez a lição de casa, cimentou o respaldo americano a Lula e, de passagem, confidenciou a interlocutores brasileiros que o governo Bush não tem interesse em que o atual escândalo político leve o mar de lama até os pés do presidente da República.

O que faltou explicar – e aqui se expressa bem o que muitos observadores comentam a respeito da falta de profundidade do noticiário – é a real motivação do governo Bush para tentar evitar instabilidades no Brasil. Bastaria cruzar a visita de Snow com um movimento interno do governo americano, fartamente comentado na mídia especializada nas últimas semanas, para que nossa imprensa pudesse oferecer ao leitor um pouco mais do que simplesmente ‘Bush apóia Lula’. Na verdade, o governo dos Estados Unidos está empenhado em preparar o terreno para o relançamento de bônus do Tesouro de 30 anos, que deve acontecer no primeiro trimestre do ano que vem, e necessita dramaticamente que o mercado mundial se comporte, neste período, com o máximo possível de estabilidade.

Bush precisa urgentemente mesclar o perfil da dívida pública americana com títulos de longo prazo, para sustentar o atual crescimento e consolidar no mercado a convicção de que se trata de um ciclo, não de uma bolha. E está longe de contar com apoio suficiente. Até analistas conservadores, como David Andelman, da revista Forbes – insuspeita porta-voz do sistema financeiro americano – insinuam que se trata de um ‘esquema de pirâmide’ no qual novos credores dão o dinheiro para pagar credores antigos, cujos títulos estão para vencer. Se for bem-sucedido no lançamento dos títulos de 30 anos, Bush precisará ainda mais de estabilidade no continente, para diminuir o risco natural de oscilações no valor dos papéis de longo prazo.

Essa é apenas uma parte da estratégia, legítima, do governo republicano dos Estados Unidos para continuar no poder nas próximas décadas. A economia brasileira tem mais complementaridades do que divergências com a economia americana. As atividades de empresas brasileiras em países vizinhos, construindo infra-estrutura e aquecendo as economias locais, aliviam tensões e reduzem o poder da guerrilha e do narcotráfico. A liderança pessoal de Lula contrabalança o risco Hugo Chávez.

Analistas de boa reputação, como Maria Vélez de Berliner, presidente da Latin Trade Solutions, esmiúçam a política e a economia da América Latina quase diariamente e distinguem Lula de Chávez como a água do óleo. Mas, para a conservadora imprensa brasileira, Lula é, num dia, um débil mental, no outro um ocioso, e no terceiro dia se transfigura em revolucionário perigoso.

Ao omitir uma vinculação tão primária entre o apoio de Snow e a circunstância do governo Bush, a mídia brasileira passa para o leitor a impressão de que Lula está apelando até para o ‘imperialismo americano’ para se segurar no poder. Ao mesmo tempo, os editoriais acusam o presidente brasileiro de adotar um tom ‘chavista’ quando se dirige diretamente à população, preferindo comícios a entrevistas. Por alguma razão, os jornais se assombram quando um chefe político vai às massas. Já era assim com Jânio Quadros, foi assim com João Goulart desde antes da eleição como vice-presidente até o golpe de 1964.

Emocionalismo e demagogia

Quando faz seus discursos, Lula é homem de ‘descontroladas emoções e pensamentos desarticulados’, segundo o Estadão. Não se trata de uma posição fundamentada em valores sólidos como a defesa da democracia ou de um projeto de nação sonhado pela mídia. Trata-se de puro preconceito, que se revela em sua inteireza no noticiário e se explicita no interior das redações, durante as reuniões de pauta ou no planejamento dos editoriais.

Com os olhos vendados por suas próprias premissas, incapaz de admitir outra visão, a imprensa, por intermédio da Associação Nacional de Jornais, convenceu a si própria de que Lula tentou criar um Conselho Federal dos Jornalismo para controlar a liberdade de expressão, depois vinculou a iniciativa a uma campanha cívica, envolvendo a Unesco numa cruzada contra supostas ameaças à democracia que nunca passaram de especulação da própria imprensa.

Lula não ajuda. Viciado nas relações de correligionário com que foi tratado pela maioria dos repórteres durante sua carreira como líder sindical, demonstra incapacidade para entender o contraditório. Nunca aprendeu a simplesmente responder perguntas e não sabe controlar a tendência a pontificar e tudo ‘explicar’. Talvez tenha chegado ao poder justamente por essa energia extremada para o debate e o convencimento. Mas, no poder, é preciso basicamente negociar premissas e preservar valores.

Ambos os lados parecem, portanto, incapazes de jogar o jogo da comunicação. Quando desanima de ver publicados seus pressupostos, Lula vai às massas. Quando ele vai diretamente às massas, a imprensa vê renascer o demônio do populismo. Dessa forma, estimulam-se incompatibilidades à esquerda e à direita do governo, empurra-se o chefe do Executivo para o córner. Torna-se ainda mais difícil para o cidadão o entendimento da persona do seu presidente e perpetua-se o emocionalismo e a demagogia nas escolhas eleitorais. Assim se consolida o ambiente no qual sai vencedor quem tem mais simpatia da mídia ou mais recursos para contratar os melhores marqueteiros.

A democracia perde o jogo.

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Jornalista