Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O que faltou no debate sobre a ‘gostosa da capa’

A foto de Luma de Oliveira na primeira página do Globo de Domingo de Carnaval teve um efeito excepcional: graças à troca de escritos entre a editora e colunista Cora Rónai (contra a escolha) e o seu colega Ascânio Seleme (a favor), publicados na quinta e sexta seguintes, o leitorado do jornal teve o raríssimo privilégio de espiar a intimidade das decisões tomadas numa redação.

Pôde assim vislumbrar ‘como se fazem as leis e as salsichas’, para citar, em um contexto a anos-luz do original, um dos ditos inesquecíveis do ‘chanceler de ferro’ Otto von Bismarck. E tanto essa oportunidade rendeu – sem falar no apelo do monumental motivo da divergência – que o Globo de sábado trouxe nada menos de 11 cartas de leitores sobre o assunto (a metade do total da seção) [os artigos e as cartas podem ser lidos na rubrica Entre Aspas, nesta edição].

Quatro deles concordaram com Cora, seis discordaram e um não tomou partido. E todos – parabéns para eles e para o jornal – mostraram que, dada a chance, o leitor é perfeitamente capaz de discutir com propriedade critérios e escolhas editoriais.

No mérito, o confronto se resume no seguinte (tomando por base o que Cora e Ascânio escreveram): para ela, trata-se de uma questão moral; para ele, de uma questão técnica.

Segundo Cora, dar Luma na ‘capa’ – quando é que jornalista vai aprender que revista tem capa, jornal tem primeira página? – equivale a ‘promover alguém que mente patologicamente e que manipula a imprensa’, a ‘tripudiar da nossa profissão’ e a ‘apresentar ao leitor uma escala de valores lastimável’.

Isso principalmente porque pesa contra Luma a acusação de ter assistido, impassível, ao espancamento de um fotógrafo da Caras por um segurança de um resort. ‘Se você tiver uma bunda suficientemente bonita’, argumenta a colunista, ‘pode fazer o que quiser…’. ‘A única coisa que conta é ser gostosa’ (para merecer foto na primeira página).

De seu lado, Ascânio contra-argumentou que a foto de Luma, ‘a rainha das rainhas das escolas de samba’, tinha de sair onde saiu porque era ‘a foto síntese do carnaval da Sapucaí…’. ‘Se fôssemos negar a Luma a primeira página pelas razões expostas por Cora, teríamos que afugentar da capa outros tantos personagens do nosso cotidiano. Notícia tem de ser publicada.’

Tomada por seu valor de face, essa posição é irrefutável. Salvo nos casos de jornalismo de combate, com o seu facciosismo assumido, critérios como os invocados por Cora não podem prevalecer sobre os da importância jornalística da personagem-notícia, ‘a quem’, objetou Ascânio, ‘não se pode negar espaço no noticiário por razões alheias à notícia’.

Olhar embaçado

Mas um problema existe – embora diferente daquele invocado por Cora. Ela menos, ele mais, ambos partiram de uma mesma premissa: a de que não havia alternativa capaz de concorrer com a foto de Luma como a condensação na proverbial imagem que vale por mil palavras do maravilhoso espetáculo que acabava de começar no Rio.

Ela menos porque, trocando por um momento o frágil piso das preferências morais pela terra firme da discussão jornalística, raciocinou que ‘Luma só é a cara do carnaval porque a imprensa decidiu que ela é a cara do carnaval; ora, uma vez que ficou decidido que ela é a cara do carnaval, ela passa, automaticamente, a ser a cara do carnaval’.

Esse argumento precisa ser ressaltado por duas razões. Primeiro, porque pega na veia do eterno dilema Tostines do ofício: notícia é o que o jornalista escolhe publicar ou é o que o jornalista não tem escolha a não ser publicar? É possível, quem sabe provável, que Luma encarne a alternativa anterior.

A segunda razão, complementando a outra, é que o argumento acrescenta ao debate uma dimensão quem sabe mais útil. Quando se define, de antemão, qual a imagem ‘síntese’ de um acontecimento, o jogo termina antes de começar: as cabeças não se abrem para a trabalhosa busca do inusitado, do não-convencional, do imprevisto – em suma da ‘notícia’ que a outros, mais preguiçosos, pode ter escapado. E que, exatamente por essas características, será visto pelos leitores como (vá lá a palavra) o retrato acabado daquele evento.

De tanto ver carnaval, o olhar do jornalista brasileiro corre o risco de se embaçar. Esse risco será tanto maior quanto mais pavloviana for atitude que ele assumir, correndo como sempre contra o relógio, diante do desafio de dar na primeira página, a cada desfile, o melhor do melhor dessa infinidade de imagens sem paralelo no mundo.

Todo mundo deu

De volta a Luma. Imagine-se que há um alguns anos ela tivesse sofrido um grave acidente que por pouco não a desfigurou e a deixou de cama e depois em fisioterapia meses a fio, sem poder ir nem a um camarote do sambódromo. Eis que bravamente ela se recupera e ao fim e ao cabo reaparece, gloriosa, na avenida. A escolha de sua foto para a primeira página será óbvia – não pela obviedade da beleza intacta ou da reaparição da personagem, mas pelo que não se podia prever antes que a sua escola entrasse na Sapucaí: como ela se sairia de volta ao mais iluminado dos palcos, na condição de madrinha da bateria. Isso, o seu esplendor recuperado, é a notícia.

Não tendo sido esse o caso e tivessem os editores do Globo a coragem de ousar, a melhor foto de Luma iria para a balança com aquelas outras que tinham sobre ela a vantagem jornalisticamente sem preço de contar, de forma original, surpreendente, a mesma empolgante história de todos os anos – e por isso uma delas ocuparia o espaço dado a Luma e mais algum. E os leitores seriam premiados com uma nova narrativa do desfile, uma ‘nova notícia’.

É por isso, em suma, que o debate sobre a ‘gostosa da capa’ do Globo mostrou tudo – menos o essencial.

De resto, ‘todo mundo’ deu Luma na 1ª, naquele domingo ou depois. A Folha, o Estado e outros menos votados. Mas, fosse este leitor o juiz do que viu publicado, a foto do carnaval carioca de 2005 seria a da suave explosão de sensualidade que Eduardo Knapp captou em um carro da Caprichosos de Pilares e a Folha deu na edição da Terça-Feira Gorda (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/inde08022005.shl). É a cara do carnaval, sem o culto fácil das celebridades.

[Texto fechado às 16h07 de 14/2]