Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O que noticiaram os jornais bolivianos

A nacionalização da indústria petrolífera decretada pelo presidente Evo Morales, no dia em que ele comemorou o seu centésimo dia de mandato, dividiu opiniões na Bolívia e levou a maior parte dos jornais e emissoras de TV a tentar adivinhar como será o país a partir de 1º de maio de 2006.


Foi um exercício onde predominaram dois tipos de atitude: a preocupação, quase um temor, sobre as conseqüências da reação internacional e o otimismo, combinando a esperança e uma aposta na clarividência do ex-dirigente cocalero (plantadores de folha de coca) Evo Morales.


Num país que estava nacionalizando os seus recursos petrolíferos pela terceira vez na história, e onde a maioria da população é indígena e descrente dos anúncios governamentais, a reação das pessoas seguiu a velha máxima do preparar-se para o pior. O fato nem chegou a ser manchete de jornal, mas não foram poucos os bolivianos que trataram de estocar gasolina tão logo souberam da nacionalização, temendo que a Petrobras paralisasse as operações no país.


Donos do gás


Logo depois do anúncio da nacionalização, a imprensa boliviana dedicou páginas e páginas ao tema, mas a cobertura foi esfriando rapidamente. O espectro do caos no abastecimento de combustíveis não se confirmou e a imprensa mudou sua agenda. A expectativa de crise cedeu lugar a notícias burocráticas sobre negociações entre La Paz e os governos estrangeiros.


Cinco dias depois do anúncio, as notícias sobre a nacionalização perderam a primazia na primeira página dos jornais. A capa do El Deber, principal jornal de Santa Cruz de la Sierra, trazia uma enorme foto da Miss Santa Cruz 2006, uma manchete sobre os protestos de Puerto Suárez e um pequeno box informando que baixou a tensão entre a Bolívia e a Espanha, por conta das nacionalizações, e que os países já estavam negociando um novo acordo petrolífero. Espaço bem pequeno, se levarmos em conta que em 2 de maio o mesmo jornal havia dedicado nada menos que 16 páginas ao assunto.


A grande preocupação dos jornais bolivianos foi a reação das empresas estrangeiras afetadas pela nacionalização. Quase todos procuraram traçar um paralelo entre as duas nacionalizações anteriores (1937 e 1969), e o decreto 28.701 de Evo Morales, mostrando os contextos históricos, os benefícios e os cenários internacionais de cada período. [Ver aqui o discurso de Morales quando da promulgação do decreto.]


O tratamento do tema petróleo também deu margem a notas bem humoradas, como o texto do cronista Paulovich (que também se identifica como Paulino Huanca e Paul Anka) intitulado, ‘Ya somos los dueños’ (Já somos os donos), publicado no jornal Los Tiempos, de Cochabamba. O autor comemora o fato de ter se tornado um dos 9 milhões de bolivianos donos do gás nacional e avisa que assim que o dinheiro for parar nas mãos dele, ‘vai arrumar muitas mulheres, seguindo o exemplo de alguns ex-funcionários da estatal YPFB [Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos] e magnatas do petróleo’.


‘Pobres e desesperados’


Os jornais que foram contra o decreto ‘Héroes del Chaco’ não esconderam o fato de que esperavam reações mais duras dos estrangeiros. Em artigo publicado na quarta-feira (3/5) no La Razón, de La Paz, o colunista José Gramunt, um padre católico e diretor da ANF (Agência de Notícias Fides), condena as nacionalizações e garante que elas não vão dar em nada porque o Estado é um péssimo administrador. Apesar de dizer que só o tempo vai mostrar se a nacionalização foi boa ou ruim, ele deixa claro que esperava um desfecho mais problemático. E pelo visto não foi só ele que se decepcionou.


A onda de críticas contra Lula veio parar na Bolívia e foi assunto, no La Razón de sexta-feira (5/5), mostrando que a pressão feita pela imprensa brasileira e a maneira como vem tratando a questão boliviana, em um contexto pré-eleitoral, aumentou a preocupação dos bolivianos sobre a reação brasileira. A matéria do La Razón diz que o tom conciliador de Lula pode prejudicá-lo no Brasil, já que estamos a menos de cinco meses das eleições presidenciais.


Já o Telepaís (da emissora Unitel), telejornal de maior audiência na Bolívia, afirmou que as divergências entre Evo e Lula estariam sendo resolvidas diplomaticamente e num clima de discrição e fraternidade.


No noticiário do dia 4/5, quinta-feira (4), depois de dar detalhes do encontro dos presidentes da Argentina, Brasil, Venezuela e Bolívia em Puerto Iguazú para discutir as conseqüências do decreto de nacionalização do petróleo boliviano, Telepaís procurou colocar o presidente venezuelano Hugo Chávez como uma espécie de tutor do seu colega Evo Morales, lançando a pergunta: ‘Será que Evo está subordinado a Chávez?’


Isso ninguém respondeu até agora, mas se a nacionalização não foi vista com bons olhos de por um lado, por outro foi tida como uma atitude de coragem e justiça. O colunista Waldo Peña Cazas, em artigo no Los Tiempos, analisa que se a Bolívia não está vivendo uma revolução com Evo, pelo menos se pode esperar mudanças positivas. Ele diz que ‘para os pobres e desesperados, a revolução não tem ideologia e nem é de esquerda ou de direita; ela só significa empregos, comida, moradia, educação e saúde’.


Principal desafio


De acordo com dados de 2001 do Instituto Nacional de Estatística, os maiores níveis de pobreza da Bolívia estão em Oruro (79,7%) e La Paz (66,2%), enquanto Santa Cruz tem o menor índice do país (38%). Não é de se espantar que para os andinos, a nacionalização foi um presente e a esperança de dias melhores. Evo Morales, que ganhou as eleições, em dezembro de 2005, com 54% dos votos (apoio do povo andino), fez questão de colocar nas emissoras de TV bolivianas uma propaganda governamental mostrando a ocupação das empresas estrangeiras por soldados do exército e as faixas afixadas avisando que agora tudo é propiedad de los bolivianos. A propaganda encerra com um carimbo na tela que diz cumplido, ou seja, cumprido – afinal, essa era uma promessa eleitoral.


Mas o que a imprensa boliviana não mostrou é que o desafio do país vai além da nacionalização dos recursos naturais. Existe uma briga muito mais difícil de ser vencida. O país está divido em dois: cambas [palavra de origem guarani que significa ‘amigo’; era usada para denominar os antigos povos indígenas assentados as margens do rio Piraí, onde Santa Cruz de la Sierra foi construída] e collas [palavra derivada de Collasuyo, uma das quatro divisões do Império Inca, que correspondeu a parte andina – oeste – do que hoje é a Bolívia]. Uma briga entre o povo do oriente (cambas) e do acidente (os andinos, os collas), uma luta entre a modernização e a cultura indígena, que busca proteger os costumes ancestrais da homogeneização provocada pelo processo de globalização.


Para a boliviana Liliana Colanzi, pesquisadora na área de estudos latino-americanos na Universidade de Oxford, na Inglaterra, uma das diferenças mais notáveis entre cambas e collas é a composição étnica das regiões. A população é em sua maioria indígena nas cidades andinas de La Paz (77%), Oruro (74%), Potosí (84%) e nos vales e terras baixas de Cochabamba (74%) e Chuquisaca (66%), em contraste com a maioria mestiça do oriente boliviano, onde os indígenas representam apenas 37% da população de Santa Cruz, 16% de Pando, 33% de Beni e 20% de Tarija.


No oriente, a modernidade se instala de forma absoluta e toma o lugar das antigas raízes. A guerra entre cambas e collas é declarada e conhecida em todo o país. Prova disso foi a criação, em 2001, da Nação Camba (Movimiento Nación Camba de Liberación), expressando o desejo do povo do oriente do país em se tornar uma república independente.


Em Santa Cruz de la Sierra é comum ouvir que eles não são bolivianos e sim cruceños. Diante disso, fica claro que um dos principais desafios do presidente Evo Morales não é só retomar o controle do petróleo boliviano, mas também nacionalizar os cambas.

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Jornalista brasileira residente em Santa Cruz de la Sierra.