Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O senhor do tempo e da política

A cobertura pela imprensa brasileira do episódio dos cartões corporativos (ainda em curso) oferece aos analistas da mídia uma oportunidade interessante para refletir sobre o papel dos jornais como atores ativos da política contemporânea, tema ainda não estudado com a profundidade necessária.

Neste episódio, a imprensa desenvolveu seu trabalho de guardião da ética pública, papel que os jornais costumam advogar para si. As denúncias dos abusos serviram para alertar a sociedade sobre os desmandos cometidos por funcionários e desencadear medidas coercitivas por parte do Estado. Até aí, tudo bem, a imprensa desempenhou um importante papel de vigilância social.

Quero aproveitar esta cobertura e fazer uma reflexão sobre a atuação dos jornais brasileiros como agentes ativos da política. Desvirtuando sua finalidade, os jornais extrapolam suas funções de quarto poder e assumiram, de maneira deslavada, um papel ativo no desenvolvimento da política, uma performance decisiva no jogo do poder.

Vou concentrar-me na cobertura do Estado de S.Paulo porque este jornal teve um papel determinante nas denúncias e assumiu no episódio uma função política explícita. Ele não revelou fatos apenas, foi muito além: arvorou-se como responsável pelas conseqüências que o episódio desencadeou, assumindo uma posição política explícita na cobertura. Passo a dar alguns exemplos sem pretender ser exaustivo.

Performance enaltecida

No dia 31 de janeiro (pagina A4), o Estadão deu em manchete que o TCU decidira esmiuçar gastos do governo com cartões corporativos. No lide, o jornal relata, desnecessariamente, que foi ele quem revelara, em reportagem do dia 13/1, que ministros utilizaram o cartão para quitar dívidas pessoais. Ou seja, o jornal se auto-atribui a notícia, passa a ser notícia de si próprio. Até aí, tudo bem, embora indesejáveis numa cobertura jornalística, autopromoções acontecem. Mas, há muito mais que autopromoção na cobertura do jornalão.

Neste mesmo dia e página, logo abaixo, o jornal traz matéria cujo título diz que a ministra Matilde Ribeiro balança. Nesta matéria, o jornal revela e assume a sua performance ativa na política. Ele mesmo diz que ‘o inferno astral (da ministra) começou quando o Estado revelou que ela gastou R$ 171,5 mil em viagens, todas pagas com cartão corporativo’.

No dia seguinte (1/2), primeira página, o Estadão traz matéria sobre o pacote do governo limitando a ‘farra dos cartões’ (linguagem que o jornal passou a usar). Já na chamada da primeira página, afirma que ‘o pacote foi anunciado 18 dias após o Estado revelar que os gastos com cartões bateram recorde no governo Lula’. O jornal não se contenta em anunciar os fatos, enaltece a sua própria performance política, sugerindo que o pacote foi uma conseqüência de seus atos.

Dobrou o governo, derrubou a ministra

Na página A4, ainda na edição de 1/2, o jornalão continua se auto-enaltecendo e assumindo descaradamente sua face performativa. A matéria principal do jornal começa assim: ‘Dezoito dias depois de o Estado ter revelado o crescimento explosivo dos gastos com os cartões corporativos o governo decidiu ontem restringir…’ No meio do texto, o Estadão publica um fac-símile de sua edição de 13/1, onde a primeira reportagem saiu.

Não se trata apenas de enaltecimento próprio. Trata-se do inconcebível fato de o jornal transformar-se na própria notícia e explicitar sua performance política. Ele atribui o desencadeamento dos fatos ao seu papel de agente dos acontecimentos e se rejubila por isso. Ele proclama ser o responsável pelas ações do governo, assume seu papel ativo de agente da política nacional. De ‘espelho’ da realidade, o jornal transforma-se em agente ativo da realidade política.

O jornalão ainda não está satisfeito por ter conseguido dobrar o governo, seu apetite político é maior. Em 2 de fevereiro, o Estadão traz chamada de primeira página e manchete interna anunciando a queda da ministra. Quais são os agentes da história, personagens do noticiário? Claro, a ministra, que pediu demissão, e o jornal, que provou sua exoneração. O texto do lide diz: ‘(…) Matilde Ribeiro pediu ontem demissão do cargo. Em entrevista coletiva à tarde, a primeira desde que o escândalo das comprar pessoais com cartão corporativo foi revelado pelo Estado há vinte dias’. Mais uma conquista política, dobrou o governo e agora derrubou a ministra.

O ator principal

O jornal parece orgulhoso de sua performance. Na mesma página, traz um ‘calendário da queda’ onde confirma para o leitor a sua força política. O episódio, conforme o Estadão, só começa em 13 de janeiro, quando ele publica a primeira de suas reportagens: ‘O Estado publica reportagem que aponta aumento do gasto com cartões corporativos. Matilde Ribeiro é campeã entre os ministros’. O calendário segue, quadrinho a quadrinho, e no dia 29 diz: ‘O Estado publica reportagem apontando que a maior parte das despesas de Matilde…’. Ou seja, o jornal é a notícia, passou a ser personagem da política nacional, ele é o agente desencadeador dos próprios fatos que reporta.

Ainda no dia 2/2, na página A6, o jornalão traz matéria de Guilherme Scaranzi anunciando que escândalos já derrubaram oito ministros. Até aí, fatos. Mas a queda do ex-ministro Palocci, segundo o jornal, só ‘ocorreu oito semanas após o Estado publicar uma entrevista com o caseiro Francenildo dos Santos Costa…’. Ou seja, o jornal já tem no seu curriculum a queda de outros ministros e orgulha-se de sua performance.

O auto-enaltecimento e a arrogância jornalística chegam a ser irritantes, de tão repetitivos. Em 4/2, o jornal diz na manchete da página A7 que a oposição quer investigar cartões dos ministros. Até aqui, fatos. Mas, o lide começa assim: ‘Um dia após o Estado revelar que pelo menos 10 dos 37 ministros declararam gastos com cartões corporativos em nome de assessores e subordinados, a oposição voltou a cobrar investigação’. Ou seja, segundo o Estadão, a oposição também só age depois que o jornal age. O ator principal da política (e de seu próprio noticiário) não são os políticos, os partidos nem a oposição. O ator principal é ele, o jornal, que faz a política acontecer.

Árbitro das coisas

No mesmo dia, no texto do sublide da página A4, a mesma arrogância jornalística: ‘A farra dos cartões corporativos já derrubou uma ministra. Matilde Ribeiro… pediu demissão na sexta-feira, 19 dias depois de o Estado ter revelado que ela foi a campeã de gastos com cartão’. Em 10 de fevereiro, página A4, o jornalão fala dos saques com cartões do Judiciário e do Ministério Público e, mais uma vez, atribui as decisões dos ministros de conter desvios como repercussões de sua ação, antes de tudo. Diz o texto: ‘… vários dirigentes do Judiciário adotaram soluções drásticas… Foi o que fez, por exemplo, o presidente do TSE… A decisão veio depois que reportagem do Estado revelou o aumento dos gastos com cartões e saques em dinheiro…’.

Qual é o fato, afinal? O jornal transforma seu noticiário no parâmetro dos acontecimentos, transforma o seu calendário de denúncias no calendário da política. Segundo o Estadão, as coisas acontecem na medida da sua intervenção no cenário da política. Poucas vezes vi tamanha pretensão de alguém em se transformar no senhor dos fatos, árbitro das coisas, o senhor do tempo, o senhor da política.

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Jornalista e professor da Universidade de Brasília