Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O triste reality show da política

Sobrevivemos a agosto de 2009. Parecia um mês interminável. O próprio mês traz consigo uma pesada carga de presságios e não é dos tempos modernos que agosto é temido e referido como azarado. Um pouco de história faz bem. Os romanos deram ao oitavo mês do ano o nome de agosto, numa homenagem ao imperador Augusto, quando estavam acontecendo os mais importantes fatos de sua vida, destacando-se, dentre os principais, a conquista do Egito e sua elevação à dignidade de cônsul. É fato que mesmo os romanos não gostavam do mês de agosto por acreditarem que um dragão enorme, e cuspindo fogo pelas narinas, passeava no céu durante todo o mês de agosto, dragão este que não passava da constelação de Leão nos céus do hemisfério norte.

Excetuando o lugar comum do trocadilho agosto/desgosto é recorrente situar eventos de sofrida memória associados ao transcurso deste mês. As duas grandes guerras mundiais tiveram início em agosto. A primeira guerra foi iniciada em 1º de agosto de 1914 e trucidou milhares de vidas. Mas não tantas para fazer refluir o ânimo belicista. Nos últimos dias de agosto de 1939 teve início a Segunda Guerra Mundial com a mobilização de mais de 100 milhões de militares e, ainda hoje, é de longe o conflito que causou mais vítimas em toda a história da Humanidade, com mais de 70 milhões de mortes.

Nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, as cidades de Hiroshima e Nagasaki foram destruídas pelo impacto das primeiras bombas atômicas que deixaram um saldo de nada menos de 200 mil vítimas. No dia 13 de agosto de 1961 foi iniciada a construção de um muro, em Berlim, depois mais conhecido como o Muro da Vergonha, dividindo a pátria de Goethe, Beethoven e Heine em duas metades. Somente em 9 de novembro de 1989 essa brutal cicatriz foi extirpada da topografia européia.

Memória do desatino

Agosto é mês emblemático na política brasileira. Vou mencionar quatro eventos apenas. Como resultado de uma crise política que assolou o país, o então presidente da República Getúlio Vargas suicidou-se, às 8h30m do dia 24 de agosto de 1954, no Rio de Janeiro, renunciando, assim, não somente à presidência da República como também à vida. Sete anos depois, no dia 25 de agosto de 1961 forças estranhas fizeram com que o presidente Jânio Quadros renunciasse à presidência da República. A partir daí foi gestado o ovo da serpente, o arbítrio substituindo o estado de direito pelos seguintes 20 anos de feroz ditadura militar.

Em 10 de agosto de 1974, Frei Tito de Alencar, cearense, 28 anos, comete suicídio em Arbresèle, França. Não suporta a carga do banimento e as seqüelas das torturas ministradas pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, na Oban, São Paulo, 1969. Em 22 de agosto de 1976, morre em desastre automobilístico Juscelino Kubitscheck – que tornou realidade um sonho desde os tempos do Império, de centralizar a capital da República. Até hoje um acidente mal explicado na ausência de seus ‘mínimos detalhes’.

Os tempos mudaram e, ao que tudo indica a grandiosidade dos eventos do mês de agosto, também. Neste agosto de 2009 a política, não em sua forma mais elevada de ordenamento da vida em sociedade, mas antes aquela paroquial e rasteira, correu solta no Senado Federal. A mídia acompanhou.

** 3 de agosto – Os senadores Renan Calheiros e Fernando Collor trocaram ofensas com o senador Pedro Simon no plenário depois que o parlamentar defendeu o afastamento de José Sarney da presidência do Senado. Renan, que é um dos principais aliados de Sarney, acusou Simon de ter como ‘esporte preferido nos últimos 35 anos’ falar mal do presidente do Senado. Simon disse que Renan ‘inventava’ acusações contra ele para defender Sarney. Irritado com as menções ao seu nome, Collor também partiu para o ataque contra Simon depois que o gaúcho lembrou que o ex-presidente havia lhe convidado para ser vice-presidente na sua chapa. ‘São palavras que não aceito sobre mim e minhas relações políticas. São palavras que eu quero que o senhor as engula e as digira como achar conveniente.’

Do Oiapoque ao Chuí as imagens e as palavras correram e dez em cada grupo de dez colunistas de política trataram do assunto. Carregaram nas tintas ao descrever o ar de fúria do alagoano e relembraram que nos anos 1960, seu pai, o então senador Arnon de Mello, protagonizara cena de faroeste no plenário do Senado. Ele matou com um tiro no peito o senador José Kairala quando mirava seu desafeto Silvestre Péricles.

** 6 de agosto – ‘Essas crises acontecem por isso, porque a minoria acha que é maioria. Minoria com complexo de maioria’, disse Renan Calheiros apontando o dedo para o senador Tasso Jereissati, que reage bradando: ‘Não aponte os seus dedos sujos para cima de mim’, disse. ‘Dedos sujos dos jatinhos do senhor’, disse Renan, em referência aos jatos utilizados por Tasso supostamente pagos com dinheiro do Senado. ‘O jato é meu, tenho dinheiro para pagar, não é dos que você anda com seus empreiteiros’, disse o tucano. Neste momento, o microfone dos senadores é cortado. Ainda assim, Renan chama Tasso de ‘coronel cangaceiro de terceira categoria’. ‘Coronel cangaceiro é o senhor’, diz o tucano, que pede para suspender a sessão e fora do microfone chama o colega de ‘coronel de m…’. O final da ópera: ‘O senador Renan quebrou o decoro me dirigindo palavras de baixo calão’, disse Tasso.

O desatino de Suas Excelências nos fez lembrar os tempos do ‘aquilo roxo’, do ‘estupra, mas não mata’, do ‘relaxa e goza’. O teor das explosões verbais só encontrou similitude no bate boca de 22 de abril de 2009 entre os ministros da Suprema Corte Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, quando este último chegou a afirmar que Mendes não estava falando com os seus ‘capangas de Mato Grosso’. Além do YouTube, as webcams na internet reverberaram o arranca rabo e todos os telejornais da noite pisaram e repisaram o assunto.

Fora de contexto

** 19 de agosto – O Conselho de Ética do Senado rejeitou todos os 11 recursos que pediam o desarquivamento de sete denúncias e quatro representações contra o presidente da Casa, José Sarney. Da mesma maneira procedeu com relação à representação contra Arthur Virgílio. Com isso, Sarney e Virgílio ficaram livres da abertura de processo de cassação de mandato.

A sessão do Conselho, como de costume nos últimos tempos, foi televisionada e todos puderam ver o teatro político por dentro, as escaramuças, os destemperos à direita e à esquerda, o escárnio e os famosos dois pesos e duas medidas imperando ao longo de toda a reunião. Foi uma sessão e tanto. Os parlamentares que podiam votar o fizeram com certo grau de constrangimento e os que não podiam de tudo faziam para atrair os holofotes midiáticos expressando votos de condenação absolutamente inúteis.

** 21 de agosto – Foi preciso que o galo cantasse três vezes, ou seja, depois de três ameaças e do anúncio oficial da ‘renúncia irrevogável’, o senador Aloizio Mercadante optou por revogar o irrevogável: da tribuna do Senado avisou que não iria mais renunciar e que continuaria na liderança de seu partido. Foi o seu Dia do Fico.

O Twitter foi acionado pelo protagonista. Mercadante monitorou através de seu microblog as decisões que estava tomando. ‘Irei renunciar amanhã pela manhã e de maneira irrevogável’, ‘Estou me dirigindo ao plenário agora’, ‘Não irei mais renunciar’. Foi atacado em peso pela grande mídia. Passada a poeira lá estava ele no Twitter: ‘Meu único erro foi dizer que era uma decisão irrevogável. Gostaria que me compreendessem.’ Mas, pelo jeito, não foi atendido nem por meia dúzia de gatos pingados, já que o bombardeio midiático estava longe de cessar. Praticamente todos os grandes jornais levaram o assunto às suas capas. Telejornais não deixaram por menos e o atabalhoado processo decisório de Mercadante foi reprisado insistentemente.

** 24 de agosto – Segunda-feira, fogo brando na lareira do Senado e então o presidente da Casa discursa em homenagem ao centenário do escritor Euclides da Cunha. Afirma que ‘não há nenhum livro no Brasil que tenha sido tão estudado, tão comentado, tão louvado e, às vezes, até mesmo criticado quanto Os Sertões‘. O senador Eduardo Suplicy pediu um aparte: ‘A situação do Senado Federal não está tranquila, não está resolvida. As pessoas desejam o esclarecimento mais cabal, que as dúvidas sobre o conteúdo das representações sejam, efetivamente, dirimidas. Eu fiquei com muitas dúvidas, gostaria de vê-las esclarecidas. O povo brasileiro deseja vê-las esclarecidas.’

O orador, desconcertado, não deixou o ato passar em branco: ‘Senador Eduardo Suplicy, eu acho que Vossa Excelência não foi indelicado apenas comigo. Vossa Excelência, que é um homem tão educado, neste momento Vossa Excelência feriu uma regra, o que acho que não é do estilo de Vossa Excelência.’

Juntar Euclides da Cunha, crise no Senado e Canudos, Eduardo Suplicy e Antonio Conselheiro em um mesmo balaio já beira o non sense. Mas foi isso que aconteceu. As regras e a composturas foram solenemente escanteadas e a melhor homenagem que teria Euclides da Cunha em seu centenário terminou sendo nublada pela obtusidade de experiente parlamentar. O aparte fora de contexto terminou servindo para manter a crise do Senado no foco da imprensa, como sempre, em horário nobre e em página nobre – aquelas três primeiras páginas dos jornais impressos.

Farto material

** 25 de agosto – Suplicy utilizou a tribuna do Senado para cobrar mais uma vez o afastamento de Sarney. Em protesto contra o arquivamento das acusações contra o maranhense no Conselho de Ética, o paulista teve um gesto impressionista e impressionante: levantou um cartão vermelho que provocou um bate boca com seu colega Heráclito Fortes.

Convenhamos: falar de cartão vermelho após o apito final do jogo é, como dizia um amigo mineiro, ‘demais da conta’. Nos dias seguintes o assunto virou piada no Senado, na Câmara, nas rodas do café, nas lanchonetes da rodoviária, nas filas de ônibus e já se falava em cartões multicor: branco da paz, rosa da cortesia, azul da serenidade e o verde do ‘Vossa Excelência tem todo o tempo do mundo’. Poucas vezes uma performance atingiu tanto a imagem do Senado quanto esta questão do cartão vermelho. É que havia teatro em excesso. Oportunismo explícito também em excesso e deliberada vontade de atrair o interesse dos telejornais… logo mais à noite.

Este agosto de 2009 foi um reality show da política brasileira. De tudo tivemos um pouco e do pouco tivemos em excesso. Faltou apenas um âncora, alguém que desse as coordenadas e que anunciasse números para se votar em quem deveria ser eliminado. Mesmo assim foram eliminados por antecipação o bom senso e lhaneza. De quebra também se eliminou a cordialidade e a cortesia. Um mês em que os editores em geral poderiam muito bem ter saído de férias. Material não faltaria para a escalada dos telejornais nem para manchetes para as capas de jornais e revistas.

Um mês antes marcado pela tragédia transformou-se em um mês marcado pela comicidade e pela hilaridade desmedida de Suas Excelências.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo