Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O uso indevido das concessões de TV

Ao sintonizar qualquer canal da Rede Bandeirantes no horário nobre, por volta das 21h, será possível ver o Show da Fé, comandado pelo missionário R. R. Soares. O programa da Igreja Internacional da Graça de Deus não é uma produção própria da emissora, tampouco uma produção independente que o grupo adquire pela sua qualidade, mas sim um dos expoentes de um novo fenômeno que vem se tornando uma prática corrente por parte de várias TVs: o arrendamento de espaços na programação.


Segundo dossiê preparado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social a partir de denúncias produzidas por diversas entidades da sociedade civil [ver ‘Dossiê reúne denúncias sobre mau uso e gestão irregular de concessões de TV‘], este tipo de ‘negócio’ constitui um uso indevido e abusivo das concessões públicas de radiodifusão. ‘O arrendamento parcial ou total contraria totalmente o espírito da lei’, afirma o documento.


A afirmação baseia-se no fato das emissoras estarem tomando para si uma prerrogativa do Estado de conceder a outorga, ou seja, definir quem pode utilizar um canal do espectro eletromagnético (por onde são transmitidos os sinais de rádio e TV) para distribuir uma programação. Com o arrendamento, são as emissoras – e não a União – que decidem quais empresas ou organizações podem acessar parte do tempo do canal cuja exploração foi dada a elas, concessionárias, somente.


Outro problema grave é o fato de uma concessionária fazer uso de um bem público, o espectro eletromagnético, para obter lucros deixando de prover o serviço objeto da concessão, no caso, a programação de TV.


O texto sustenta que o aluguel de espaços na programação deve ser considerado inválido mesmo que não haja uma proibição expressa no arcabouço legal da comunicação social eletrônica. Na avaliação dos signatários do dossiê, a legislação brasileira relativa à concessão de serviços públicos deve ser utilizada como parâmetro para demonstrar a omissão flagrante nas normas específicas que disciplinam a radiodifusão.


‘A comparação com as outras concessões públicas – em que a subconcessão só é permitida se prevista no contrato, autorizada pelo poder concedente e antecedida de concorrência pública – nos permite dizer que o silêncio da lei de radiodifusão sobre a matéria não deve ser entendida como um consentimento, mas como uma não autorização’, argumentam os autores do documento.


Para ser coerente com a normatização dos serviços públicos, a prática do aluguel de espaço de programação, conclui o dossiê, só poderia ser admitida caso houvesse autorização do Executivo Federal e os locadores fossem escolhidos por meio de uma concorrência pública com normas e critérios rígidos e objetivos.


Ocupação a serviço de Deus


O principal locador de espaços na programação são os grupos religiosos católicos e evangélicos. De acordo com o dossiê entregue pelas entidades, a Rede Bandeirantes repassa 7 horas e 30 minutos de seu tempo diário para a Assembléia de Deus e à Igreja Internacional da Graça de Deus, sendo 5 horas e 30 minutos para a primeira e 2 horas para a segunda. O Canal 21, também do grupo Bandeirantes, recentemente passou a arrendar 22 horas diárias de sua programação à Igreja Mundial do Poder de Deus.


Segundo nota da coluna do jornalista Daniel Castro na Folha de S. Paulo (18/9/2008), a ‘campeã’ do aluguel a igrejas é a Rede TV!, que subloca 58 horas semanais a este tipo de organizações.


A Record aluga seis horas da sua programação à Igreja Universal do Reino de Deus. No entanto, a rede deve ser vista de maneira diferenciada das anteriores, uma vez que é o próprio dirigente máximo da igreja, bispo Edir Macedo, quem decide o que vai ao ar na Record. Ou seja, o arrendamento, neste caso, configura-se como uma trama ainda mais complexa no jogo de burlar a legislação que caracteriza os contratos de aluguel de espaço na TV.


Os retornos obtidos pelas emissoras são bastante altos e contribuem fortemente na cesta de receitas mensais. De acordo com Daniel Castro, o arrendamento do Canal 21 à Igreja Mundial do Poder de Deus deve render R$ 420 milhões nos próximos cinco anos. Já a locação da 5 horas e meia na Band pela Assembléia de Deus custará R$ 336 milhões por quatro anos. Ainda na Band, o espaço alugado por R.R. Soares injeta nos cofres da emissora R$ 5 milhões por mês.


Estado laico, mídia laica?


Para o professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador da área Venício Lima, além do problema do arrendamento, o aluguel de espaços nas programações de redes por grupos religiosos também coloca dúvidas sobre a legitimidade da presença deste tipo de organização na radiodifusão.


‘Um serviço público que, por definição, deve estar `a serviço´ de toda a população, pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive, ou sobretudo, religiosos? Ou, de forma mais direta: se a radiodifusão é um serviço público cuja exploração é concedida pelo Estado (laico), pode esse serviço ser utilizado para proselitismo religioso?’, questiona no artigo ‘Estado laico e radiodifusão religiosa‘, publicado no Observatório da Imprensa (23/9/2008).


Na avaliação de James Görgen, coordenador do projeto Donos da Mídia, a resposta é negativa. ‘É flagrante o desrespeito das empresas que loteiam sua grade de programação para a transmissão de programas religiosos ou de televendas em relação ao Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto 52.795/63) e à Constituição Federal de 1988, que prevêem finalidades informativas, educativas, artísticas e culturais para os canais de rádio e TV’, diz o pesquisador. E completa: ‘Portanto, não há previsão de uma finalidade religiosa – seja católica, evangélica ou neopentecostal – para a programação de ambos os serviços. É quase surrealista o fato de existirem vedações a esse conteúdo e mesmo assim termos pelo menos dez redes nacionais de televisão no país dedicadas exclusivamente à transmissão de conteúdo religioso.’


Ocupação a serviço das vendas


Outro ente que vem ocupando as grades de programações das emissoras são os grupos que vendem produtos pela televisão. Segundo levantamento realizado pelo Intervozes, coordenado por Diogo Moyses, São Paulo é um dos espaços onde isso ocorre de maneira intensa. A Bandeirantes aluga, aos sábados pela manhã, 3 horas para uma das empresas que realizam este tipo de negócio. Já a TV Gazeta veicula, mediante locação, o programa Best Shop por 2 horas e 30 minutos todas as manhãs e 5 horas e 30 minutos durante as madrugadas.


Mas a emissora com maior incidência é a Mix TV, que ocupa sua grade com os chamados ‘infomerciais’ durante 20h. Em seguida vem a RBI, que arrenda 15 horas para shows de televendas. Na avaliação das entidades signatárias do dossiê, apresentado na audiência sobre renovação das concessões de rádio e TV realizada na Câmara em novembro, a sublocação de espaços para vendas de produtos deve ser entendida como negociação de espaço publicitário.


Neste caso, ele deve ser considerado ao avaliar o limite máximo de 25% do tempo diário para este tipo de conteúdo presente no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. Caso o Ministério das Comunicações tivesse disposição em realizar de fato este tipo de fiscalização, fica evidente o desrespeito a este limite seja daqueles canais que veiculam mais do que 25% do seu tempo com ‘infomerciais’, seja naqueles que ultrapassam o limite somando televendas e anúncios publicitários ordinários.


Na avaliação de Diogo Moyses, os contratos de aluguel de espaços para empresas de televendas incorrem em três ilegalidades: sublocam a grade de programação, extrapolam o limite permitido de publicidade e não cumprem a determinação constitucional de dar prioridade às finalidades culturais, educacionais e informativas. ‘Além de ilegal, é algo absolutamente imoral’, afirma.


Para ele, a difusão cada vez maior deste tipo de prática mostra a ausência crônica de regulamentação e fiscalização nas comunicações brasileiras. ‘O aluguel da grade de programação das emissoras é um dos maiores símbolos do descontrole absoluto do Estado sobre a exploração do serviço’, avalia. ‘O mais grave é que o Ministério das Comunicações, que deveria fiscalizar as emissoras, finge que não é com ele. Com isso, ser concessionário de radiodifusão, além de um negócio lucrativo, tornou-se extremamente fácil: basta ter obter a outorga e lotear os horários da emissora. Quem não gostaria de ter um negócio desses?’, questiona.


À espera de providências


O conjunto de denúncias apresentado na audiência foi protocolado na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, no Ministério das Comunicações e entregue ao representante do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União presentes ao encontro. Resta saber se, com tão flagrantes desrespeitos e ilegalidades, serão tomadas providências por parte destes órgãos.


 


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