Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O vale-tudo pré-eleitoral

O eleitor é cego em tiroteio na pré-temporada eleitoral: não vê nada, não sabe de nada, mas pode levar chumbo quente quando as negociações de bastidores estiverem finalizadas e as candidaturas forem oficializadas. Talvez com surpresas.

A comparação é de pé quebrado, por contrapor realidades tão desiguais, mas ajuda a situar o leitor diante do confuso momento político no Pará. A atualidade do Estado faz pensar na fase pós-revolucionária da França na passagem do século 18 ao 19, quando o governo era exercido pelo diretório. Entre os diretores havia vários aspirantes ao poder. Todos eles, mesmo aqueles dotados das virtudes republicanas e revolucionárias, desabrochadas com a revolução de 1789, estavam dispostos a fazer qualquer tipo de acerto, acordo ou negócio, ainda que os mais espúrios, para mandar mais – ou, se possível, mandar só.

Quem acabou mandando foi o ‘grande ausente’, o soldado genial que por vários anos desenvolveu campanhas militares consagradoras no exterior, na Itália e no Egito. Ao voltar para a França, sendo recebido como o seu salvador, Napoleão Bonaparte sondou cada um dos possíveis aliados para um golpe de estado que acabaria com o poder colegiado do diretório e abriria caminho para o consulado, o império e, por fim, sua ditadura pessoal (embora não absolutista). A crônica cotidiana desse período é das mais reveladoras do caráter humano, Talvez como em nenhuma outra fase da sua história, o homem se despojou de praticamente todos os valores morais e éticos para alcançar o poder.

Jogo de cena

Se a imprensa paraense fosse realmente comprometida com o seu leitor e não estivesse tão intimamente enredada no jogo do poder, talvez ela pudesse nos fornecer uma crônica de aldeia, pequena e provinciana quando referida à tragédia francesa, sobre situações bem semelhantes às que transcorriam em Paris e motivaram diversos cronistas. Já houve época em que os jornais de Belém mantinham repórteres especializados para acompanhar os principais personagens da cena política e relatar seus movimentos diários na composição de alianças eleitorais.

Havia omissões e adições nessa cobertura diária, mas o que saía em letra de forma, com todas as suas deficiências e insuficiências, permitia ao leitor se manter informado e ter ao menos um vislumbre do quadro de opções que lhe seria oferecido para votar. Desta vez, em plena era de informação instantânea e global, o cidadão comum vive na escuridão política. Só saberá dos fatos quando as candidaturas forem sacramentadas, tudo estiver consumado e muito leite derramado (o de origem vegetal e o de inspiração simbólica). E votará por compulsão, mais do que por opção. Por dependência, mais do que por afirmação. Com resignação, mais do que com entusiasmo.

Só sabe dos ziguezagues das principais peças dispostas no tabuleiro político quem tem acesso ou acompanha Ana Júlia Carepa, Jader Barbalho, Duciomar Costa, Simão Jatene e alguns outros atores dessa tragicomédia, como tem sido a eleição no Estado, além de seus interlocutores e peões. Essa movimentação não é definida nem delimitada por posições ideológicas, filiações partidárias, inimizades pessoais ou mesmo pelas biografias dos políticos. A agenda dos contatos e a pauta das conversações dependem dos interesses de quem as maneja na perspectiva da maior aproximação que puder conseguir do poder – para si ou para os seus. Para poder fazer o que quiser e o que lhe convém.

Vejamos só um exemplo. Até recentemente, o deputado federal Jader Barbalho e o prefeito de Belém, Duciomar Costa, estavam em posições diametralmente opostas. O jornal do líder do PMDB chegou a publicar matérias diárias, sempre com destaque, contra a administração municipal, numa campanha massiva e maciça. Eram várias as causas apontadas para essa hostilidade: Duciomar se colocara no caminho de Jader ao se propor a disputar uma das vagas do Senado, para onde o morubixaba de paletó desejaria retornar; também podia ser porque se aproximara demais do grupo de comunicação rival, o Liberal, destinando-lhe mais verbas do que ao grupo de comunicação da família Barbalho; o antagonismo também se agravou quando Duciomar abusou da máquina pública para derrotar o candidato do PMDB à prefeitura de Belém, José Priante.

Qualquer que tenha sido o motivo da dissensão, ela, se não acabou, foi atenuada. As matérias críticas do Diário amainaram e praticamente evaporaram. Garante-se que os dois caciques já se encontraram. Não há prova dessa reunião, mas é público e notório que seus representantes estão se entendendo. No caminho desse entendimento há a ação proposta pelo PMDB na justiça para cassar Duciomar, acusado de abuso de poder para conseguir se reeleger. As possibilidades de confirmação da cassação, concedida por juiz de 1º grau e depois revogada por outro juiz, para o qual o processo foi despachado pelo presidente do TRE, desembargador João Maroja (contra quem o PMDB reclamou ao Conselho Nacional de Justiça). Maroja, que estava de férias no Chile quando a ação foi protocolada, foi acusado de ter feito distribuição irregular.

Se a conversa tiver bom desfecho (por enquanto, imprevisível), PMDB e PTB formarão uma chapa completa para disputar a eleição de outubro? Como elementos da base aliada do PT ou contra o Partido dos Trabalhadores? Para ajudar Ana Júlia a conseguir um segundo mandato ou para tirá-la do governo, colocando em seu lugar um peemedebista ou um petebista? Ou tudo não passa de jogo de cena, junto com outras falsas movimentações, como a de Jader no rumo de Jatene ou de uma candidatura própria, que poderia ser a dele, para confundir ou aumentar o valor do prêmio a ser pago no momento da oficialização das chapas?

Sem ‘grande ausente’

Traições, baixarias, mentiras, falsidades, balões de ensaio e outras peças do arsenal de golpes dos políticos devem integrar o menu dessa intensa movimentação de bastidores, que não emerge no noticiário da imprensa. Seus donos, afinal, não são observadores e narradores da cena, mas atores, também com seus interesses específicos e nem sempre relacionados ao bem coletivo. Eles participam quase tanto quanto os políticos (ou às vezes, mais), aproveitando-se dos instrumentos que têm para dar amplitude a tudo que fazem.

O que explica a grande foto que O Liberal publicou na capa do jornal, exibindo seu principal executivo, Romulo Maiorana Júnior, ao abraçar o novo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, o paraense Ophir Cavalcante Júnior. A imagem inverte a hierarquia dos valores: a presença do cap do grupo Liberal realça e eleva a importância do presidente da OAB, personagem coadjuvante na disposição da fotografia. Ophir, aliás, prestou um grande serviço aos Maiorana e uma ofensa à liberdade de imprensa quando classificou a agressão praticada contra mim por Ronaldo Maiorana (presidente da comissão em defesa da liberdade de imprensa da OAB/PA, então presidida por Cavalcante Júnior) como ‘rixa familiar’.

Muito embora a motivação alegada pelo agressor (também editor e diretor corporativo da empresa) tivesse sido um artigo meu neste jornal, não contraditado por nenhuma carta do suposto ofendido nem qualquer matéria no jornal do agressor como contraponto. Se isso não é crime de imprensa, o que Gutenberg inventou não foi a imprensa: foi o urinol.

Como na época do diretório, vale tudo na política que se pratica no Pará. Mas literalmente tudo. Infelizmente, porém, não existe um ‘grande ausente’, nem herói, muito menos inocentes. Essa infelicidade não tem a estatura de um drama ou de uma tragédia: é comédia das piores.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)