Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O discurso maniqueísta

Se houvesse uma palavra para descrever sucintamente a linguagem da imprensa do Brasil neste início de século, ela seria: “maniqueísmo”. Esse é o principal sintoma da crise de inteligência que afeta a mídia tradicional em quase duas décadas, período em que, contraditoriamente, se esperava um alargamento da reflexão no ambiente midiático, como um dos resultados previsíveis da evolução tecnológica na base de captação e publicação de notícias.

Da primeira à última página de jornais e revistas, do primeiro ao último minuto que o telespectador, ouvinte ou usuário dedica à televisão, ao rádio e à internet, praticamente todo tempo e todo espaço ocupado pelo sistema de informações é recortado por narrativas simplistas nas quais se pode identificar facilmente a presença dessa visão primária da realidade. O viés que domina o noticiário predominante na mídia tradicional, muito mais claro nos assuntos de política e economia, é a manifestação mais escancarada dessa deficiência.

Pode-se argumentar que o contexto produtor de informações – a frágil democracia brasileira, ainda contaminada por sequelas do autoritarismo – condiciona, na origem, o processo comunicacional. De fato, há uma relação inevitável entre a imprensa e o ambiente em que ela se desenvolve, mas o que se espera do jornalismo é justamente que seja capaz de expor a complexidade de seu tempo com uma visão de futuro, e não que tente determinar o futuro com base num olhar passadista.

Alguns analistas têm eventualmente abordado essa relação, mas o viés dominante na mídia dá mais visibilidade à opinião conservadora, quando não abertamente reacionária, o que impõe ao ambiente midiático essa tonalidade monocromática. No entanto, mesmo uma opinião comprometida com o reducionismo maniqueísta pode contribuir para a compreensão dessa deficiência básica da imprensa nacional, como se pode observar, por exemplo, em artigo publicado sexta-feira (23/1) pelo jornalista Fernão Lara Mesquita no Estado de S. Paulo e no seu blog Vespeiro.com (ver aqui).

Reflexões como essa são raras nos jornais brasileiros, porque a imprensa não se pensa. Eventualmente, porém, essas manifestações são mais esclarecedoras pelo que não dizem do que pelas afirmações que fazem.

Non duco, ducor

Essencialmente, Mesquita afirma que o regime em que vivemos não é uma democracia, e que a democracia leva a culpa de tudo de mal que acontece no Brasil. Na sua opinião, ao enfatizar os pecados dos políticos, a imprensa demoniza a política porque se restringe a uma crítica “moral” do sistema e se mostra incapaz de uma crítica “técnica e propositiva” das instituições.

A causa dessa deficiência, na sua opinião, é a “terceirização da orientação política” da cobertura do jornal para o segundo escalão, o que condena o órgão de imprensa a ser conduzido por suas fontes – “em vez de conduzir seus leitores”, diz o autor.

Deve-se dizer, do maniqueísmo, que, quanto mais elaborado for o discurso, mais evidente fica o propósito de reduzir as possibilidades de interpretação, pois a intenção não é ampliar a diversidade de ideias, mas conduzir todas para um mesmo funil. Aliás, a intenção maniqueísta do texto em questão é confessada no ato falho de Mesquita, ao considerar explicitamente que a função do jornal é “conduzir seus leitores”.

Mas façam os observadores suas próprias conjecturas ao ler o texto citado, que se usa aqui apenas como exemplo de como, mesmo quando se dispõe a refletir sobre seus fundamentos éticos, a imprensa encontra uma barreira que não consegue transpor. Ela pode ser definida pela pretensão confessada por Mesquita: a de que o jornalismo é o “condutor” da cidadania.

Esse é, exatamente, o ponto original do debate: ao considerar que sua missão é guiar a sociedade, os pensadores da imprensa confessam o caráter autoritário e manipulador de sua atividade.

O maniqueísmo é a manifestação mais honesta desse discurso camuflado, que mal dissimula seu grande temor: o problema, para os donos da mídia, não é haver terceirizado a orientação política de seus jornais, porque seus prepostos são geralmente mais realistas que o rei. O que os assombra é a mudança na função de mediar o contato dos indivíduos com a realidade, e a crescente percepção de que o mundo sempre vai precisar do jornalismo, mas não necessariamente daquilo que chamamos de imprensa.