Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ombudsman faz o bem, com um porém

O jornalista Marcelo Beraba foi muito mais crítico de mídia do que ombudsman da Folha de S.Paulo na sua coluna de domingo, 1º de agosto. Ele usou cerca de 4/5 do seu espaço para falar de outra publicação – a revista IstoÉ – que, nas suas palavras, produziu na semana anterior ‘uma edição histórica, para o bem e para o mal’.

O papel assumido por Beraba – que este leitor não se lembra de ter visto alguma vez em artigos de outros ombudsmans, no Brasil ou no estrangeiro – foi para o bem. Com um porém de que logo se tratará.

Foi para o bem porque chamou a atenção de um público muitas vezes maior do que o da IstoÉ para a sua matéria de capa ‘Rio trabalhador’, na mesma edição que continha a reportagem-bomba ‘Presidente e diretor do BC esconderam da receita bens no exterior’. Na capa, o furo ficou confinado a um slash.

Por causa da matéria, como se sabe, o diretor do BC, Luiz Augusto de Oliveira Candiota, pediu demissão. E a oposição pediu a cabeça do presidente Henrique Meirelles.

[Na edição desta semana, a revista acusa outro presidente, o do Banco do Brasil, Cássio Casseb, de ter feito o mesmo que Meirelles e Candiota. Todos negam. No momento em que este texto é redigido, Meirelles e Casseb ainda estão presidentes.]

‘Estranhamente’ foi o delicado advérbio usado por Beraba para se referir ao fato de a IstoÉ ter preferido entronizar na capa ‘um material sobre o Rio de Janeiro com cara de publicidade disfarçada’.

Na pele de crítico de mídia, o ombudsman destroçou a matéria – ’19 páginas de textos, sem autoria e sem nenhum vislumbre de senso crítico jornalístico, e duas páginas de anúncios do Sesi do Rio’.

Vinculou o pacote aos ‘tempos difíceis’ por que passam as empresas de jornalismo no Brasil; daí as ‘formas ‘criativas’ de atrair anunciantes’, escreveu.

Esfregando sal na ferida, acrescentou um quadro com os princípios da ‘Carta sobre Transparência de Mídia’, recém-divulgada no exterior [veja íntegra na rubrica Interesse Público, nesta edição]. Um dos objetivos do documento é ‘pôr fim ao pagamento por cobertura de imprensa’.

Já que fez o que não se imagina que o ombudsman Michael Getler, do Washington Post, ou o editor público Daniel Okrent, do New York Times, por exemplo, fizessem, Beraba completou o serviço envergando a jaqueta de repórter de mídia. Procurou o governo do Rio, a Federação das Indústrias do Estado (Firjan) e a direção da IstoÉ para saber ‘se o material foi pago e por quem’. Só o governo respondeu, para dizer não. Nas publicações que têm editores de mídia, isso é tarefa para eles, não para ombudsmans.

Para o leitor de parca memória – ou que tenha mais a fazer do que acompanhar brigas entre barões da mídia – seria tudo ouro sobre azul, um bem-vindo indício de que o novo ombudsman da Folha pretende levar às últimas conseqüências a segunda tarefa que faz parte do seu mandato: ‘comentar o noticiário dos meios de comunicação’. A primeira, naturalmente, é a de ‘criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores’.

Quase sempre, nessa e em outras publicações, tais comentários se concentram em comparar desempenhos, para identificar onde foi que o jornal do ombudsman errou e não para desancar a concorrência. Beraba, de fato, não deixou de registrar que ‘a Folha cobriu mal’ os desdobramentos do furo da revista. Só que o fogo amigo entrou na coluna como que por dever de ofício. O chumbo grosso, repita-se, foi para a IstoÉ.

Agora, o porém prometido onze parágrafos atrás.

A luz que alumia

No dia 29 de janeiro, o presidente do Grupo Três de Comunicação, que edita a IstoÉ, Domingo Alzugaray, almoçou na Folha com outros empresários e executivos de mídia (Folha, 30/1/04).

Nesse almoço, Alzugaray pediu a dirigentes da Folha ‘que o nome de sua empresa fosse retirado de reportagem que o jornal preparava sobre negociações do programa federal de refinanciamento de dívidas tributárias, o Refis. O pedido não foi aceito. A idoneidade dessas negociações foi posta em questão pela Controladoria da União.’ (Folha, 17/2/04).

Efetivamente, na reportagem ‘Governo parcela dívidas em 8.900 séculos’, de Josias de Souza, diretor da sucursal de Brasília, se lê:

‘A Editora Três, gráfica em cujas rotativas é impressa a revista IstoÉ, logrou dividir uma dívida de R$ 222,4 milhões em parcelas que, a depender do faturamento da empresa, pode se alongar por até 344 anos. Domingo Alzugaray, dono da editora, levanta dúvidas quanto aos números da Procuradoria da Fazenda: ‘Creio que devemos a metade disso’. Alzugaray acrescenta: ‘Não tem fundamento a alegação de fraude. Pagamos religiosamente pelo faturamento. O que acontece é que esse faturamento não é suficiente. O país está parado. O prazo de 344 anos é até otimista. Ou começamos a faturar novamente como há cinco, seis anos, ou não vamos pagar nunca. Vamos afundar em dívidas’.’ (Folha, 1/2/04)

Na edição com data de capa de 18 de fevereiro, a revista IstoÉ Dinheiro informou que o provedor de internet Universo Online (UOL), da qual o Grupo Folha é acionista, estava quebrado. O jornal anunciou que iria processar a revista por difamação e calúnia.

‘O UOL alcançou o equilíbrio financeiro em abril de 2003. Não possui dívida com bancos ou fornecedores. Ao contrário, dispõe de aplicações financeiras da ordem de R$ 60 milhões.’ (Folha, 17/2/04).

Este leitor entende que a revista IstoÉ não está obrigada a informar como obteve exatamente as informações de que os presidentes do BC e do BB, além de um diretor do BC, estão sendo investigados por suspeitas de omissão fiscal, além de sonegação e evasão de divisas.

Assim como não cabia à revista Época revelar como obteve a fita que acabou com a carreira de Waldomiro Diniz no serviço público e pôs a prêmio a cabeça de seu padrinho, o ministro José Dirceu.

É tão certo como a morte e os impostos que, na origem desses e da esmagadora maioria de vazamentos do gênero, há o que os editoriais costumam chamar ‘motivações escusas’ – políticas, econômicas, financeiras, familiares, sexuais, o diabo.

De seu lado, o canal de mídia escolhido para vazar o malfeito alheio (suposto ou real) dificilmente haverá de ignorar a quem a revelação beneficia. Somando 2 mais 2, os jornalistas do pedaço também acharão a resposta para o proverbial cui prodest.

E não é de excluir que um jornal, revista ou emissora também tenha ‘interesses negociais’ ocultos na divulgação de uma denúncia.

Se a imprensa brasileira figurasse na pauta da imprensa brasileira, talvez pudesse apurar coisas preciosas nesse departamento. No entanto, a falta que isso faz, e não é pouca, não altera o essencial: saber, em cada caso, se as revelações que envolvem autoridades são verdadeiras.

No episódio atual, se é verdade que existe uma investigação em curso contra os senhores Henrique Meirelles, Cássio Casseb e Luiz Augusto Candiota – e se o que se investiga é realmente o que se informou estar sob investigação.

Mas, como não se cansa de lembrar o colunista Ancelmo Gois, de O Globo, citando o ‘filósofo’ José Genoíno, presidente do PT, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Ou seja: quando um ombudsman de um órgão de mídia só falta jurar pela luz que o alumia que outro órgão de mídia levou bola para publicar uma reportagem – e de capa ainda por cima! – é legítimo acrescentar aos louvores pela acusação uma cobrança: por que ele não lembrou o leitor de que há mala sangre entre os dois órgãos?

Pedra na mão

Ninguém precisaria ensinar ao ombudsman Marcelo Beraba como escrever, no pé da sua valente nota, o seguinte PS: ‘Esta Folha e a Editora Três, que edita a revista IstoÉ, têm um conflito. O jornal está processando a empresa porque outra revista do grupo, IstoÉ Dinheiro, publicou informações falsas sobre o provedor UOL, de que o Grupo Folha é acionista. O jornal atribui a publicação ao fato de ter se recusado a atender ao proprietário da editora para que a empresa não fosse citada em reportagem sobre a sua participação no Refis, um programa de refinanciamento de dívidas tributárias de duvidosa idoneidade.’

Tendo privado o leitor desse ato de transparência jornalística, o ombudsman da Folha passou a arcar com uma dívida. Ele terá que publicar textos não menos extensos e incisivos do que o de domingo passado sobre eventuais matérias ‘sem compromisso com o jornalismo’ de outros periódicos ou emissoras.

Do contrário ficará parecendo que bateu na IstoÉ só porque o seu patrão está brigado com o dela e deixou deliberadamente de avisar o leitor dessa briga, impedindo-o de pensar por si.

Ainda mais porque no dia seguinte, na mesma Folha, a coluna de Mônica Bergamo, assinada pelo interino Sérgio Dávila, voltou ao assunto com uma pedra em cada mão. A primeira: o presidente da Firjan, Eduardo Gouveia Vieira, ‘teria financiado’ a matéria sobre o Rio maravilha. A segunda: o dono da IstoÉ, Domingo Alzugaray, comprou ‘por um valor entre R$ 6 milhões e R$ 8 milhões’ a TV Sul Fluminense, em Barra Mansa, ‘no miolo industrial do Rio’. [Texto fechado às 17h07 de 2/8]