Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Onde estão os cronistas?

Que tema atravessa o tempo desde que o jornal mais antigo do mundo começou a circular em 1645 – o sueco Post-och Inrikes Tidningar? A liberdade de expressão. E sempre há espaço para mais conversa, mais defesa, mais relevo. É invocada pelo caluniador quando tentam enquadrá-lo. É levantada pela vítima de calúnia quando não consegue dar publicidade à sua defesa ou quando não consegue o espaço e o destaque recebido pelo agressor.

Mas existe certa liberdade de expressão muito pouco invocada. É aquela liberdade de sentir o pensamento muito próximo e de pensar o sentimento no volume máximo. Este tipo de liberdade de expressão poderia ser melhor canalizado no formato da crônica. Aliás, onde estão nossos bons cronistas? Ainda temos bons cronistas? Como descobrir os bons cronistas? Existem, ainda, bons cronistas? Respondo apenas com o próprio sinal de interrogação.

E pensar que houve um tempo em que, nas manhãs de sábado, íamos à banca de revistas comprar o Jornal do Brasil – aquele dos velhos tempos, da Condessa Pereira Carneiro – com o coração batendo acelerado. Motivo: sábado, dia de Clarice Lispector. Na sexta-feira, 25 de setembro de 2009, lembrei da crônica de Clarice para o JB publicada no sábado, 25 de setembro de 1971.

Miudezas da alma

O Brasil era canteiro de obras do ditador Emílio Garrastazu Médici. Essas obras incluíam fechamento de jornais, tortura e morte de quem pensasse em voz alta a palavra liberdade. Clarice não estava alheia ao que tolhia o Brasil. Mas estava muito ligada a outra guerra e, pelo que escreveu, lutava uma guerra perdida. Ela escreveu:

‘Esta – se disse o homem como se fosse para uma guerra – esta é a minha prece do possesso. Estou conhecendo o inferno da paixão. Não sei que nome dar ao que me toma ou ao que estou com voracidade tomando senão o de paixão. O que é isso que é tão violento que me faz pedir clemência a mim mesmo?’

Com texto começando assim Clarice alargava as fronteiras da crônica. Escrevia para além do cotidiano, muito além da rotina e se aproximava da intimidade com que o pensamento retinha o sentimento. Escancarando portas e janelas do subjetivismo, Clarice elevou a crônica de jornal a outro patamar assim como no passado já fizera Machado de Assis ao retratar o Velho Senado e esses senhores sapientes metade homens metade instituição; e fizera também Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade trazendo o tempero da poesia emprestada às pequenas miudezas da vida.

Clarice tratava das miudezas da alma e seu texto confirmava o vanguardismo do Jornal do Brasil, aquele que um dia criara o ‘Caderno B’.

Pura provocação

Parece covardia, mas não é. Busquei garimpar crônicas de jornais e revistas semanais tendo como instrumento a peneira usada por Clarice. E esta peneira retinha apenas o que era pura linguagem e puro espírito. Ao final da busca vi-me frustrado. Porque não existem pessoas dispostas a aventurar-se no mundo da palavra, na ambiência da não-palavra. Deparei-me com crônicas superficiais, quase pequenos tratados de autoajuda, coisa de uma indigência absoluta dada a pieguice na forma de abordar, ao abuso do lugar-comum e dos conceitos fáceis, sempre tão ao gosto da praga de audiovisuais que recebemos às dezenas em nossa caixa de mensagem eletrônica.

Vi crônicas com complexo de tese doutoral tal a pretensão do autor a rememorar ícones do pensamento liberal e a situar a banalidade da cena em contraponto com a Escola de Frankfurt.

Outras crônicas nem mereciam ser chamadas crônicas. Trazem o pecado original da futilidade, quando não frívola. E pensar que um dia líamos as pequenas glórias de Copacabana através do olhar do pernambucano Antonio Maria, sim, aquele que autoparodiava com ‘ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire’.

Neste vazio do texto leve e alado dos que sabiam escrever crônicas vemos a multiplicidade de colunas, artigos opinativos onde o autor trata de refletir sobre economia internacional, sobre educação de qualidade em um mundo globalizado e por aí afora. E, claro, as colunas desbocadas, onde cada frase se tivesse dedo estaria em riste e se tivesse mãos estariam estrangulando esta ou aquela vítima, geralmente, alguém ocupando alto cargo público após passar pelo teste quadrienal das urnas. São colunas de puro mau humor e evidente descaso para com a inteligência do leitor. Os textos são expelidos como insultos – e acabada a temporada de louvação caem na vala comum do non sense.

Clarice criou seu próprio lugar e não foi menos cronista de jornal que escritora cult. Mas era inconfundível e em sua arte parece não ter deixado seguidores. Longe de eleger desafetos para massacrar em textos semanais, Clarice esticava todo o significado da palavra provocação. Era uma provocação expor sua relação com Deus e com Sua criatura como também era pura provocação falar da felicidade sentindo-se infeliz ou das guerras quando tinha o pensamento em paz.

Meio sorriso

Não conheci pessoalmente Clarice Lispector e seus textos só apareceram em minha vida após sua morte em, 10 de dezembro de 1977. Em compensação devo conhecer, como qualquer pessoa, milhares de outras pessoas. Dessas tantas que conheço nenhuma marcou meu pensamento tão fortemente quanto a palavra, sempre em transe, de Clarice. Ainda na casa dos 20 lembro da sentença definitiva: ‘O que alarga a vida de uma pessoa são os sonhos impossíveis’.

A essa altura do campeonato da vida há muito desisti de encontrar nas páginas de um jornal crônica que tenha trecho como este, também da crônica de 25 de setembro de 1971:

‘Não quero pedir a Deus que me aplaque, mas amo tanto a Deus que tenho medo de tocar nele com o meu pedido. Meu pedido queima. Minha própria prece é perigosa de tão ardente e poderia destruir em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim.’

Um esclarecimento aqui é inadiável: não estou buscando alguém para suceder Clarice nas páginas de sábado de um jornal porque sei que isso é impossível, seria o mesmo que pedir que as mesmas águas voltassem a passar sob a mesma ponte. O que busco é algo bem mais simples; são crônicas que não se envergonhem de ser crônicas; são crônicas que não almejem ser ensaio; são crônicas despojadas, aquelas que não guardam a pretensão de alterar o movimento dos planetas nem retardar a passagem das estações do ano. É que não se escreve mais pelo prazer da escrita. E a vida, há muito, deixou de ser tema de nossos cronistas. Aprendi há tantos anos que a pior tragédia na vida de homem é aquilo que morre dentro dele quando ele ainda está vivo.

Intuindo que um dia alguém poderia estar fazendo esse tipo de busca, encontrei, com um meio sorriso de satisfação, essa explicação de Clarice:

‘Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada… Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro…’

Ah, o nome da crônica do Jornal do Brasil de 25 de setembro de 1971 é ‘Dies Irae’.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo