Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Orçamento estraçalhado e a pauta sem dono

O escândalo das sanguessugas pôs em foco, de novo, as mazelas do orçamento brasileiro. Mas a maior parte da imprensa não foi além da bandalheira ostensiva. Concentrou-se nas denúncias, depoimentos e listas divulgadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito. Publicou fotos e nomes, prestando um serviço de utilidade pública. Isso talvez impeça a reeleição de alguns bandidos. Outros continuarão sendo votados. Mas poucos jornais noticiaram a aprovação no Senado, em segunda votação, do projeto sobre o orçamento impositivo. Esse projeto é uma proposta de emenda constitucional. Com ou sem ambulâncias superfaturadas, isso pode ser o prenúncio de muito desmando com o dinheiro do contribuinte.


Valor e Gazeta Mercantil deram a notícia na quinta-feira (3/8), um dia depois da aprovação. O Valor continuou a cobrir o assunto na sexta. O Estado de S. Paulo, no domingo (6), tratou do assunto em editorial. Se o projeto for aprovado na Câmara, o ministro da Fazenda terá de enfrentar mais uma bomba financeira, porque outra bomba já está sendo armada com a expansão dos gastos permanentes neste ano [ver nota no pé desta matéria].


Pela proposta já aprovada no Senado, o governo será obrigado, em princípio, a realizar todas as despesas previstas no Orçamento da União. Pelo regime em vigor, o orçamento apenas autoriza os chamados gastos discricionários, sem torná-los obrigatórios. Esses gastos incluem os investimentos e parte do custeio. As emendas de parlamentares, incluídas as bandalheiras de sanguessugas e assemelhadas, entram nessa parte da programação financeira.


Colcha de retalhos


O orçamento impositivo, adotado nas democracias mais desenvolvidas, não obriga o Tesouro, naturalmente, a pagar por ambulâncias superfaturadas. Mas o governo terá maior dificuldade, sob o novo regime, para conter malandragem – se tiver interesse em contê-la.


Há desvantagens políticas no sistema em vigor. Como os gastos são facultativos, o Tesouro pode soltar o dinheiro segundo as conveniências particulares do grupo no poder. Pode dar preferência às emendas de parlamentares amigos – como tem ocorrido, por exemplo, neste ano. A liberação de recursos torna-se um instrumento de cooptação, de favorecimento e de barganha.


Mas o regime tem um lado positivo e suas vantagens, no Brasil, podem ser muito maiores que os inconvenientes. O Tesouro pode congelar verbas, durante algum tempo, e assim distribuir os gastos durante o ano, de acordo com a evolução da receita. Pode simplesmente ignorar certas emendas e nunca realizar algumas despesas. Tudo isso tem facilitado a obtenção de superávits primários para o ajuste progressivo das contas públicas.


Há dois argumentos de peso a favor do sistema em vigor. O processo orçamentário, no Congresso, não é sério. Deputados e senadores costumam reestimar a arrecadação projetada na proposta original. A reestimativa serve para acomodar as emendas de parlamentares. São milhares de emendas, aprovadas sem discussão. A prática normal é a barganha. Um parlamentar apóia a proposta de seus pares e recebe, em troca, o apoio dos demais. Falta ao processo um mínimo de respeitabilidade aritmética e financeira. Gente séria prefere subestimar a receita, por segurança, e ajustar o orçamento durante o ano.


O segundo argumento refere-se à qualidade das emendas. O processo orçamentário é defeituoso de ponta a ponta, mas é especialmente ruim nessa parte. As emendas são negação absoluta do planejamento. Cada parlamentar procura cuidar de uma clientela ¬ corporativa, regional ou local, e seu esforço é para arrancar, como puder, um pedaço das verbas previstas. A chamada ‘parte livre do Orçamento’ é estraçalhada, como o são os corpos de animais caçados por matilhas de predadores.


Esse processo, além de perigoso para o equilíbrio financeiro, é incompatível com um mínimo de racionalidade governamental. O atual sistema de emendas é a consagração do desperdício. Não é, nem pode ser, compatível com um princípio geral de planejamento. Esta ou aquela obra pode ter algum valor, do ponto de vista local, mas um programa federal de investimentos não pode ser uma colcha de retalhos. Além do mais, obras iniciadas com dinheiro de emendas podem ser interrompidas e ficar inconclusas. Isso exacerba a perda de recursos.


Um clássico


Tudo isso é agravado por um defeito característico do orçamento brasileiro. A maior parte da receita – mais de 80% – tem destinação obrigatória, por lei. A programação financeira do governo é engessada e sobra pouquíssimo espaço para o planejamento. Esse espaço ainda é desperdiçado com as emendas.


Mantido esse quadro, a adoção do orçamento impositivo resultará, quase certamente, num desastre maior. Diante do risco, o Ministério do Planejamento começou a trabalhar num projeto de reforma orçamentária para substituição gradual do sistema. Até o último fim de semana, a maior parte da imprensa ignorou essa notícia.


As editorias de Economia dão pouca atenção, habitualmente, a esse tipo de notícia. Em contrapartida, as editorias de Política tendem a concentrar-se nas articulações eleitorais e nos lances mais ostensivos do jogo do poder. As questões institucionais de maior alcance ficam numa terra sem dono e sem pretendentes.


Um dos filósofos políticos mais importantes do século 20, John Rawls, dedicou uma parte importante de seu primeiro grande livro, Uma Teoria da Justiça, ao exame das ‘instituições de fundo da justiça distributiva’. Para essa análise, ele retirou material precioso de um livro do economista Richard Musgrave publicado em 1959, The Theory of Public Finance, convertido rapidamente num clássico.


Nos anos 1970, Richard Musgrave e sua mulher, Peggy, produziram um grande manual traduzido no Brasil com o título Finanças Públicas – Teoria e Prática. No prefácio da primeira edição eles advertiram:




‘Dado o papel central do processo político nas decisões fiscais, o estudo das finanças públicas ultrapassa os limites da economia, definidos estritamente, penetrando em áreas que em outras circunstâncias poderiam ser consideradas como pertencentes aos domínios da filosofia e da ciência política’.


Os jornais seriam melhores se pauteiros de Economia e pauteiros de Política relessem essa advertência de vez em quando.


***


Nota [incluída às 16h01 de 8/8/06] — Na versão divulgada inicialmente, esta matéria continha um erro, pois indicava a possibilidade de veto da emenda constitucional pelo presidente da República. Pelo artigo 60 da Constituição, a emenda é promulgada pelas Mesas da Câmara e do Senado. Agradecimentos ao leitor Dermeval Vianna Filho, de Florianópolis (SC), que apontou o erro. [O comentário do leitor está postado abaixo].

******

Jornalista