Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os rostos da tragédia

Quem se acostumara a ouvir sobre enchentes devastando extensas regiões da Ásia, sabia da destruição causada por aqueles furacões com nomes próprios a castigar os Estados Unidos, e dos sempre temidos e inesperados terremotos criando cenários apocalípticos com regularidade espantosa na China e no Haiti, também no Chile, Peru… e na China, passou a sentir na própria pele que o Brasil não ficaria imune em uma acelerada globalização dos desastres naturais.


Nos últimos doze meses sofremos a dor dos brasileiros que com suas lágrimas aumentaram o volume das águas despejadas sobre São Paulo, Santos, São Luiz do Paraitinga, Rio, Niterói, Florianópolis e agora, neste momento, novas dores causadas por fortes chuvas que atingem parte da região Nordeste desde o dia 18 de junho e que já provocaram a morte de 54 pessoas e fizeram mais de 150 mil pessoas deixarem suas casas. As duas últimas mortes confirmadas são de uma criança de 2 anos e um homem de 34, nas cidades de Recife e de Gameleira, ambas em Pernambuco.


Conta pesada


A Defesa Civil do Estado de Pernambuco registra, além das mortes, 12 cidades em estado de calamidade pública e outras 27 em estado de emergência. São nada menos que 26.966 desabrigados na terra do frevo e do maracatu. Mas estas ao menos conseguiram abrigo em casas de parentes e de amigos. O que não é o caso de outros 55.643 pernambucanos desalojados, a depender exclusivamente de alojamentos providos pelo poder público. Nesta tristíssima tragédia temos ainda 142 pontes danificadas devido às chuvas.


Da maior parte das cidades pernambucanas em calamidade nunca se havia ouvido falar. Entram em meu imaginário as cidades de Água Preta, Barra de Guabiraba, Barreiros, Correntes, Cortês, Jaqueira, Palmares, São Benedito do Sul, Vitória de Santo Antão, Primavera, Catende e Maraial.


Em Alagoas, as enxurradas dos últimos dias provocaram 34 mortes e deixaram 76 desaparecidos. Oitenta mil pessoas afetadas, das quais cerca de 75 mil tiveram que deixar suas casas. Desses, 47.897 estão desalojados e 26.618 desabrigados. Além disso, há ainda o registro de 135 pessoas que deixaram suas casas e não foram localizadas ainda.


Cito aqui apenas os números para atender a essa sede – sempre insaciável – por quantificar a infelicidade: quantas vidas perdidas, quantas pessoas desalojadas, sem casa e sem ter para onde ir, qual o tamanho dos prejuízos materiais. Leio na Folha de S.Paulo que…




‘…apenas na semana passada, o estado de Alagoas chegou a divulgar um levantamento parcial em que apontava que os prejuízos causados pelas chuvas já totalizavam cerca de R$ 740 milhões. Desse valor, R$ 575 milhões corresponde aos prejuízos relacionados a danos em casas, que já totalizam mais de 19 mil destruídas.’


E não ficamos por aí: teremos prejuízo de 137 milhões de reais apenas com a destruição de estradas e de pontes. O inventário da destruição é muito maior.


Da melhor qualidade


‘Nenhuma fotografia e nenhum filme demonstra a gravidade da situação que a gente vê quando entra nas ruas da cidade’, disse o presidente Lula em sua visita à Rio Largo. Mas, é fato, a imprensa tem meios extraordinários capazes de transportar para nossas casas e nosso cotidiano a tragédia que ora se abate sobre Pernambuco e Alagoas.


É graças à imprensa que proliferam doações de bens duráveis e de pecúnia para minorar a dor de nossos irmãos. Para isso há que se ter sensibilidade – mais que social apenas, humana.


E foi o que aconteceu quando meu bom amigo (e de tantos anos) Lunaé Parracho, morando em Salvador, partiu para Alagoas. Mestre que é na arte de captar imagens que vibram e sonham, premiado com trabalhos na National Geographic, Lunaé me enviou um lote de fotografias na terça-feira (29/6). Destaco quatro delas para que possamos nos acercar dos longos silêncios graves que aprisionam essas cidades.





Uma semana após as chuvas que atingiram o município de Murici, a menina Jaquelina Maria da Silva, 9 anos, segura duas bonecas que vieram com as doações em um dos galpões improvisados como abrigo à beira da estrada, onde vive há mais de uma semana com a mãe Maria da Silva, 33. ‘Ninguém sabe o que vai ser da gente’, diz. Esta foto poderia ser chamada solidariedade das bonecas, quando não sabemos exatamente quem abraça quem.





Sebastião José da Silva, 79 anos, avô de Jaqueline, guarda silêncio… Sebastião é daqueles seres humanos feito com barro de primeiríssima qualidade. Já passou por muitas secas e muitas enchentes e quem o conhece deve saber que foi pensando nele que Euclides da Cunha escreveu no seu Os Sertões que ‘o nordestino é antes de tudo um forte’.





Maria Helena, 30, carrega um vaso sanitário em União dos Palmares. Foi a única coisa intacta que encontrou nos escombros da casa onde morava com o marido e dois filhos. Esta imagem traz consigo um choque de realidade. Maria Helena tem tudo para ser uma dos milhares de beneficiários do Bolsa Família (que alguns chamam de Bolsa Esmola). É do Brasil que não mais se contenta em ser aquele gigante (sempre) adormecido em berço esplêndido. Do mesmo Brasil que pensa seriamente em ocupar a quinta posição dentre as maiores economias do mundo.





Em uma fotografia vemos não apenas o que está para ser visto, mas também o que desejamos ver. Neste pequeno Francisco, Carlos, André, Antonio ou Jeová, é ele que me olha. Há um quê de dignidade, uma aura de pequeno herói, uma altivez insuspeitada não fosse a destruição trazida com as águas.


Se o Brasil conquistar na África do Sul seu hexacampeonato é este menino que deveria ser chamado para levantar a taça. Porque existem momentos em que precisávamos ser abraçados com os braços de todas as mães do mundo.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter