Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Paira no ar um cheiro de enxofre

Uma vez, Truman Capote disse que existia uma espécie de requinte literário na linguagem textual do jornalismo impresso. Ele era favorável à elaboração de grandes reportagens com uma pitada de narrativa ficcional. Sendo no universo da realidade ou da ficção literária, na década de 1970 os jornalistas do diário paulistano Notícias Populares aprontaram uma de deixar de cabelo em pé qualquer guru desse Novo Jornalismo.

Já conhecia o caso pela internet. Mas, com o nariz grudado na página de cultura da primeira edição de Movimento, publicação épica da imprensa alternativa brasileira, pude ler uma profunda análise da saga do Bebê-diabo, fruto da inegável criatividade alucinógena que pairava na redação do NP, jornal pertencente ao Grupo Folha.

Tudo nasceu a partir de rumores de que em São Bernardo do Campo e em Lençóis Paulista teriam nascido crianças deformadas, parecidas com diabos. Em 11 de maio de 1975, a manchete do NP seria: ‘Nasceu o Diabo em São Paulo’. Falta de assunto, jornalistas alegaram mais tarde. Se a manchete ‘Podre o pé do papa’, do Diário da Noite de São Paulo, é a estrela no Hall da Fama do sensacionalismo na imprensa brasileira, o causo do Bebê-diabo é uma supernova.

Moleque peralta

Amado por uns, odiado por outros, mas com certeza temido por vários, o Bebê-diabo aterrorizou moradores de São Paulo, mesmo sem ter existido. As reportagens misturavam fotos manipuladas e notícias inventadas com depoimentos reais de pessoas apavoradas com o bicho, que com apenas alguns dias de vida ‘fugiu’ do hospital. Como naquela época os hospitais públicos eram mais infernais que hoje, antes da fuga o Bebê-diabo alfineta o poder público, dirigindo-se aos médicos: ‘Meu lugar não é aqui. Vocês são pavorosos.’ Sim, ele já nasceu falando. Suas primeiras palavras foram para ameaçar a própria mãe de morte.

Depois de sua fuga do hospital, o Bebê-diabo ‘teria sido visto’ por aí, infernizando pessoas, pulando em telhados, pedindo sangue para beber, tocando campainhas, palitando os dentes com um facão, entre outras coisas. Parou um táxi à noite e deixou o motorista assustado ao falar que o destino da corrida seria o inferno. Ele era mais um moleque peralta do que um verdadeiro diabo, com toda a força da palavra. Talvez porque ainda fosse bebê.

Um pouco de conservadorismo

O Bebê-diabo acaba sendo ‘seqüestrado’ por um grupo fanático que queria sua morte, provocando a reação de alguns fãs, que julgavam o personagem real. Chegaram a se organizar em grupos de busca para resgatá-lo nas matas de Ribeirão Pires. Dias depois, já ‘recuperado’ do seqüestro, o diabinho foge para o Nordeste, onde, supostamente, seria procurado pelo cineasta Zé do Caixão, que pretendia mandá-lo de volta para o inferno ou aprender com ele alguns truques de capeta. A saga do monstrengo durou cerca de um mês e duplicou as vendas do jornal.

Não faltavam padres, médicos, psiquiatras, pessoas do povo e até dados científicos para comprovar a existência do bebê. Utilizaram até citações de São Tomás de Aquino para embasar a estória. Por trás de tudo, um pouco de conservadorismo: a existência do Bebê-diabo se justificaria pela negação da mulher à maternidade, pela dissolução da família e pela desagregação moral da vida moderna.

Ficção e realidade misturadas

Possuído por uma entidade malévola provavelmente estava o jornalista José Marqueiz, um dos criadores do bebê e autor das ‘reportagens’. Depois de passar pela redação do NP, ele se mudou para Manaus, onde passaria a infernizar os leitores com uma outra notícia inventada em série, a do Bebê-peixe. Vale ressaltar que, segundo a matéria de Movimento, Marqueiz ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo em 1974 (!).

Mais impressionante que a ‘cascata’ do mini-monstro é como o próprio jornal se coloca frente à brincadeira:

‘Os repórteres de Notícias Populares (…) não se deixarão intimidar por ameaças de morte por parte de pessoas incrédulas ou temerosas ao Demônio e que não querem esse tipo de revelação. Levaremos a verdade a nossos leitores, custe o que custar, (…) a exemplo do que viemos fazendo. Não há dúvidas de sua existência, estando isso mais do que provado através de vários testemunhos de pessoas idôneas.’

Esses testemunhos eram suposições amedrontadas de uma imaginação popular alimentada pela criatividade paranormal e demoníaca do próprio jornal. Depois de ler ou ouvir falar no Bebê-diabo, quando qualquer coisa que lembrasse o personagem se desencadeava no meio de tiroteios, atropelamentos, suicídios ou outras mazelas, algumas pessoas passavam a acreditar na existência do moleque macabro.

Nessa brincadeira com a cabeça do povo, uma notícia do Bebê-diabo acabava atraindo outra, com testemunhas e fontes reais. Sendo a personificação do mal, o bebê sempre estaria rondando próximo às encrencas em geral, verídicas. Ficção e realidade se misturavam, de uma maneira que Truman Capote nunca deveria ter imaginado.

Mentiras e omissões

A reportagem de Movimento, por fim, sapeca:

‘Há um ineludível perfume de enxofre (…) no exercício da profissão. Realmente, se não existir o demo, pelo menos o seu estilo é conhecido há milênios: ele trabalha com a mentira, a deformidade e o caos, e prefere sempre se mostrar onde não está exatamente.’

Por um lado, a saga do Bebê-diabo e suas estripulias de criança-problema podem parecer divertidas. Dei risada quando ele palitou os dentes com o facão. Mas, como a própria ‘cascata’ mostrou, existem pessoas capazes de acreditar neste tipo de notícia. A informação de qualidade não chega em todos os cantos do Brasil. A educação, tampouco. Em pouco mais de 30 anos a situação não mudou muito para grande parte da população.

O sensacionalismo é uma prática que distorce, zomba e engana. Muitas vezes recorre ao humor, como chamariz. Existe hoje, por meio da internet, um crescente público leitor que tem cada vez mais consciência disso. Em geral, pessoas de classes mais ou menos economicamente estáveis, familiarizadas com o jornalismo crítico-blogueiro-cidadão, entre outros meios de informação alternativos. Sobra a eles, então, a pergunta: o que será pior? O sensacionalismo deslavado ou o direcionamento político sutil e implícito, marcado pela cegueira ideológica, tanto de direita quanto de esquerda? Em ambos os casos, mentiras e omissões.

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Jornalista da Coordenadoria de Publicações Seriadas da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ