Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pauta para depois dos Jogos Pan-Americanos

Em contraste com as matérias ufanistas da televisão, que exaltam o Brasil e os atletas brasileiros com um otimismo que chega a beirar o ridículo, as declarações fortes – e algumas vezes ácidas – de Juca Kfouri são difíceis de se encontrar em tempos de jogos Pan-Americanos. Ele é um dos poucos jornalistas que cobrem o esporte com um viés político – ou a política sob o ponto de vista esportivo, tanto faz.

 

Para Juca Kfouri, o Pan do Rio de Janeiro, que termina no domingo (29/7), ‘é um evento de terceira categoria’, com países como Estados Unidos e Canadá enviando atletas longe de serem do primeiro escalão. ‘Em termos esportivos, há muito tempo o Pan não representa nada de importante. Basta dizer que desde 1987, há 20 anos, não se quebra um recorde mundial nos jogos Pan-Americanos’, diz.

 

E o que acontece? ‘Acaba sendo uma coisa falaciosa. O país está criando uma expectativa de achar que vai chegar em Pequim [nas Olimpíadas de 2008] e achar que vai repetir esse número de medalhas. Evidentemente que não vai’, afirma.

 

Como marca do Pan, o jornalista acredita que ficará uma possível investigação do evento em uma Comissão Parlamentar de Inquérito, no Congresso (algo ainda sequer cogitado pelos parlamentares) e na Câmara de Vereadores do Rio, onde ela já foi criada e está prevista para ser instalada em 14 de agosto, após os jogos.

 

O escândalo – e que é uma das motivações da CPI – diz respeito aos gastos com o evento. A previsão inicial era de R$ 720 milhões, mas o valor está prestes a chegar à casa dos R$ 4 bilhões. ‘Tudo foi feito rigorosamente em cima das pernas, para usar uma expressão educada’, diz Juca.

 

Colunista da Folha de S.Paulo, Juca Kfouri, 57 anos, é também comentarista do canal de TV por assinatura ESPN e mantém um programa na rádio CBN, além de ter um dos blogs mais visitados da internet brasileira.

 

Eis a entrevista que o jornalista concedeu ao Congresso em Foco, por telefone, na tarde de segunda-feira (23/7).

 

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A previsão inicial de gastos do Pan era de R$ 720 milhões, mas o custo final está quase na casa dos R$ 4 bilhões. O que de errado aconteceu?


Juca Kfouri

– O que eles argumentam é que, em regra, esse tipo de evento sempre estoura o orçamento, o que é verdade. Por exemplo, na Inglaterra, para as Olimpíadas [Londres será a sede em 2012], já há um estouro de 30%, o que está causando uma grande celeuma lá. Mas essa é a média, 30%. Aqui nos já chegamos a 400%. Acho que é fruto, por um lado, de um planejamento feito de maneira modesta, para convencer o governo federal de que era possível, era viável e era barato. Para que depois, quando as coisas não estivessem caminhando como eles prometeram – eles, quando eu digo, é o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) –, chantageassem o governo, encostassem uma faca na garganta, dizendo: ‘Olha, do jeito que está não vai dar, vai ser uma vergonha para o país se a gente tiver que desistir’. Aí o governo abriu a mala. Grande parte desse estouro, segundo o próprio TCU [Tribunal de Contas da União], é fruto de eventual superfaturamento. Há muita obra feita, há muito gasto feito sem licitação. Tudo foi feito rigorosamente em cima das pernas, para usar uma expressão educada.

 

O Pan foi organizado de uma forma tipicamente brasileira. A cidade do Rio de Janeiro foi escolhida sede em 2002. São quase cinco anos para se preparar um evento, e ele acaba saindo, não sei se poderia se referir assim, um desastre?

 

J.K.

– Sem dúvida nenhuma. Do ponto de vista orçamentário, é mais que um desastre, é um escândalo.

Do ponto de vista esportivo, os Jogos Pan-Americanos podem ser considerados um evento de segunda divisão? Na natação, por exemplo, o grande nome mundial atualmente é o norte-americano Michael Phelps, que não veio ao Brasil.

 

J.K.

– Segunda divisão é generosidade. Diria que é um evento de terceira. Muito mais importante que os Jogos Pan-Americanos, por exemplo, em termos de índices, são os jogos asiáticos. Por incrível que pareça, até a Universíada [jogos mundiais universitários] é um evento mais importante que os Jogos Pan-Americanos. Em termos esportivos, há muito tempo o Pan não representa nada de importante. Basta dizer que desde 1987, há 20 anos, não se quebra um recorde mundial nos Jogos Pan-Americanos. Nós já estamos entrando nos últimos dias dos Pan no Brasil, nenhum recorde mundial foi quebrado, e provavelmente não será. Porque os americanos e os canadenses vieram com as suas terceiras, quartas equipes. Acaba sendo uma coisa falaciosa. O Brasil está criando uma expectativa de achar que vai chegar em Pequim [nas Olimpíadas de 2008] e repetir esse número de medalhas. Evidentemente que não vai. Na natação, por exemplo, pelos índices alcançados, embora o Thiago Pereira tenha tido a façanha de ganhar seis medalhas de ouro, mas o único nadador que se aproximou do recorde mundial foi César Ciello, a dois décimos de segundo de igualar o recorde mundial do russo Alexander Popov. Mas, de resto, são índices que deixariam os nadadores brasileiros em sexto, sétimo, oitavo lugar numa Olimpíada, se chegar a esse ponto. É um evento de terceira categoria, tanto que não se vêem grandes cidades do continente pleiteando ser sede do Pan-Americano. Você não vê Nova York, São Francisco, Los Angeles, Montreal, Quebec. Eles não querem fazer Jogos Pan-Americanos, querem é sediar uma Olimpíada. O Pan seria um evento muito bom para se fazer em Curitiba, em Recife, em Belo Horizonte, nunca para o Rio ou São Paulo.

A vaia ao presidente Lula, na abertura do evento, será o que vai ficar de mais significativo desse Pan?

 

J.K.

– Não, acho que não. A vaia é mais ou menos histórica, já que o Maracanã sempre vaia políticos e vaiou o Lula. Também não estava ali um público que é eleitor do Lula, estava ali gente que pôde pagar R$ 150, R$ 200, e acho que aquilo, de fato, faz parte. Esse não será o aspecto mais notório que marcará o Pan. Tem um lado de festa na cidade, de congraçamento, que é importante, é estimulante, e que talvez faça um bem para o Rio, tomara. O que é de se lamentar é que tudo aquilo que se prometeu, que ficaria como legado para a cidade, como uma nova linha de metrô, saneamento da baía de Guanabara, da lagoa Rodrigo de Freitas, nada disso foi feito. E teme-se pelos equipamentos esportivos. Porque se tem uma coisa que é necessário fazer antes de construir um grande equipamento esportivo é saber exatamente qual será o destino dele depois do evento. E isso ainda não se sabe. Acho que o que vai ficar e vai marcar o Pan vai ser uma CPI. Tanto na Câmara dos Vereadores quanto no Congresso. Essas CPIs é que vão mostrar o tamanho do descalabro.

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro ainda não instalou a CPI?

 

J.K.

– Ainda não está em funcionamento. A CPI que está funcionando é a do Riocentro, por causa de um equipamento que foi passado por uma empresa francesa, sem maiores cuidados técnicos. Mas já está definido que a CPI vai começar logo depois que o Pan terminar.

Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), preside também a CO-RIO, empresa organizadora do Pan. Isso é um escândalo, não?

 

J.K.

– Acho que é no mínimo um conflito. Isso faz parte da política. A figurinista da delegação brasileira é cunhada dele. A filha dele trabalha no marketing de uma das empresas que ganhou a concorrência para trabalhar no Pan. Um diretor do COB é o representante da companhia de seguros que segurou o Pan. O sócio dele ganhou o direito de fazer o evento de abertura e os tíquetes eletrônicos. Quer dizer, é tudo um grande compadrio, nepotismo de cima a baixo.

Há muitos casos suspeitos no esporte, como o Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que acabou sendo reeleito recentemente, sem nenhuma concorrência, além desses casos no Comitê Olímpico Brasileiro. Por que não há uma fiscalização eficiente sobre essas entidades esportivas e seus presidentes?

 

J.K.

– Porque eles têm um poder de sedução muito grande. Um discurso demagógico, de que se sacrificam pelo desenvolvimento do esporte. Eles têm um poder político que não é desprezível. Você cobre o Congresso e sabe o que é a chamada bancada da bola, que teve o poder, anos atrás, na Câmara dos Deputados, de impedir que o relatório da CPI da CBF/Nike sequer fosse votado. O esporte brasileiro é uma outra face de uma situação que é nacional, infelizmente.

E com a conivência de alguns grandes órgãos da mídia.

 

J.K.

– Eu diria que principalmente com a cumplicidade da mídia eletrônica, que se associa a essa gente para poder comprar o direito de transmissão dos eventos. Acaba tratando essa gente como sócio, e sócio você não cobra politicamente. Você só enche a bola.

Nunca na história, como gosta de dizer o Lula, um presidente da República deixou de fazer um discurso na abertura dos jogos Pan-Americanos, em decorrência daquela vaia. O Palácio do Planalto já anunciou que ele não vai estar presente no encerramento do evento, no próximo domingo. Na sua avaliação, há algo de ruim nisso?

 

J.K.

– O fato de ele não ter feito a abertura oficial foi uma gafe absolutamente imperdoável. Primeiro, porque é obrigação dele. Segundo: era uma demonstração de acatamento democrático da hostilidade que recebeu. Ele não ia fazer um discurso sobre vaias, ia se limitar a dizer uma frase: ‘Declaro aberto os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro’. Não ter feito isso não honrou o passado de um militante acostumado a falar para as mais diversas platéias. Se ele vai ou não no domingo, ainda é incerto. Há quem diga que ele vai, há quem diga que não. Também haverá de contribuir para que ele não vá o acidente da TAM. Parece que ele pode achar como boa desculpa o fato de que não faz sentido o presidente do Brasil ir a uma festa no momento em que o país está de luto e escandalizado com o que está acontecendo no setor aéreo. Mas é melhor não ir do que ir e ferir o protocolo, como ele feriu na abertura.

Muitos atletas brasileiros que participam do Pan reclamaram das dificuldades, alguns falaram até que tiveram que vender o carro para participarem de competições. Enfim, o governo brasileiro investe muito pouco no esporte…

 

J.K.

– Veja bem, o país tem um erro de foco, para usar uma palavra que está na moda, muito claro. O papel do Estado, principalmente em um país com as carências do Brasil, é promover o esporte como fator de saúde para a população brasileira. Esporte de alto rendimento não deve ser preocupação do Estado. O Estado tem que massificar o esporte, e naturalmente da quantidade sairá a qualidade. Essa qualidade deve ser trabalhada nos centros de excelência, a custo da iniciativa privada. O que há aqui é uma inversão. Não temos uma política esportiva para o país, não se pensa o esporte como fator de inclusão social, não se pensa o esporte como um fator de prevenção de doenças, e nós temos todas essas distorções. Em regra, nossos atletas mais bem-sucedidos, com raríssimas exceções, são frutos de geração espontânea, do próprio talento. Para pegar um exemplo recente, o Guga, que apareceu com o talento que ele tem, ficou quase uma temporada inteira como número um do ranking mundial, ganhou três vezes em Roland Garros, e não se fez nada, apesar de ter havido uma euforia por causa do tênis em todo o país, para se aproveitar essa euforia e eventualmente trabalhar em novos Gugas. Essa é uma crise que vem há anos, não se pensa o esporte seriamente no Brasil. Pensa-se de maneira demagógica, levar a seleção para o Haiti, fazer lá um jogo, enfim, não se tem realmente uma política.

Os Jogos Pan-Americanos são vistos como um teste para futuros eventos no Brasil, como a Copa do Mundo, em 2014, e uma eventual Olimpíada. Qual será o maior legado do Pan?

 

J.K.

– Se a pretensão era mostrar pelos Jogos Pan-Americanos que o Brasil pode sediar uma Olimpíada, e essa é a desculpa oficial do Nuzman para o estouro no orçamento, de que ‘nos preparamos para uma Olimpíada e não para um Pan-Americano’, o país está reprovado. Até pelas coisas que aconteceram.

Como, por exemplo?

 

J.K.

– Não pôde começar um jogo de softball porque uma chuva destruiu as instalações. Dirigentes do judô que jogaram coisas nos juízes porque discordaram de uma decisão da medalha de ouro entre o Brasil e um cubano. Até a nossa torcida, infelizmente, vaiando ginastas estrangeiras, como o coro ‘vai cair, vai cair’. Na disputa do salto com vara também vaiaram uma norte-americana. Você não vê isso em nenhum lugar do mundo. Você até vê em esportes coletivos, mas em esporte individual a torcida aplaude todos os concorrentes. Claro que mais para o seu, mas não vaia o adversário. À parte algumas instalações belíssimas que estão aí entregues, não foi um evento que tenha passado com distinção para poder pensar em uma Olimpíada.

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Do Congresso em Foco