Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pauta plausível, matéria inverossímil

O ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, aponta em sua coluna de domingo (6/11) três fatores que podem ter contribuído para o arrefecimento do noticiário sobre os dólares voadores supostamente destinados à campanha do PT em 2002. Um são as lacunas da reportagem da Veja da semana passada. O segundo seria o cansaço das pessoas com o noticiário da crise. O terceiro seria a blindagem do ministro Antonio Palocci.

Reptado a votar em um deles, eu votaria no primeiro: se o dinheiro entrou, é quase impossível rastreá-lo. E a pessoa que supostamente melhor poderia falar sobre o assunto, Ralf Barquete, já morreu. A reportagem não tinha como ultrapassar essa barreira. E não ultrapassou.

A história é ao mesmo tempo plausível e inverossímil. Alguma barreira de silêncio poderá ser furada se alguém de dentro do esquema abrir a boca, o que não aconteceu até agora em relação a temas menos candentes. Vide o silêncio de Delúbio Soares. E, mais espantoso, o de Marcos Valério de Souza.

A história é plausível

Para quem militou no velho Partido Comunista Brasileiro, não tem mistério nenhum. Receber dinheiro da Meca, ou Roma, do ‘socialismo real’, Moscou, era a coisa mais natural do mundo, uma decorrência do internacionalismo proletário.

O último baluarte – melhor seria dizer fortim, do ponto de vista econômico e social, mas não militar – do ‘socialismo real’ é Cuba, com o qual a velha ultra-esquerda aninhada no PT, e periferias, sempre mantiveram boas relações, ao contrário do Partidão. Carlos Marighella, dissidente do PCB que criou a ALN (Aliança Libertadora Nacional), grupo de luta armada, foi recebido de braços abertos pelo Partido Comunista de Cuba na Conferência Tricontinental de Havana, em 1966. Luiz Carlos Prestes não aceitava com simpatia a projeção de Fidel Castro, cuja luta armada fora pixote perto da do Cavaleiro da Esperança, embora com resultados práticos incomparavelmente mais efetivos. Esse estilo de solidariedade de esquerda não constitui novidade. Cuba apoiou grupos armados que militaram no Brasil, e não apenas com treinamento. José Dirceu foi da ALN.

(Por sinal, esse nome é uma homenagem à ANL (Aliança Nacional Libertadora), frente política em que se apoiou a fracassada insurreição de 1935 (‘Intentona Comunista’), que comemora 70 anos no próximo dia 22. E, pauteiros, já que estamos no capítulo das rememorações, na próxima sexta-feira faz 50 anos do 11 de Novembro, o golpe antigolpe do general Henrique Lott, ministro da Guerra do então presidente Carlos Luz. Foi o que levou à presidência da República o presidente do Senado, Nereu Ramos, e assim garantiu a posse de Juscelino Kubitschek.)

A história é inverossímil

Na quarta campanha presidencial, quando Lula e Dirceu resolveram aceitar alianças (infelizmente, de má qualidade, como se vê hoje), acreditar que lhes passou pela cabeça colocar em risco a vitória por ‘um punhado de dólares’ é algo sem dúvida esquisito. Embora todo dinheiro em campanha eleitoral seja bem recebido (nem sempre ele vai para despesas da campanha…), custa crer que o planejamento de Dirceu e Palocci tenha incluído esse item. Pode ter sido uma aventura marginal. Pode ter sido algo combinado muito tempo antes, antes de haver uma perspectiva tão clara das possibilidade de vitória petista, cuja concretização tenha acontecido apenas no final de julho de 2002.

Blindagem não é para toda munição

Que o PT não tinha preparação para chegar ao poder, apesar dos vinte e tantos anos de caminhada, está mais do que claro. Falta de quadros de alto nível, excesso de esquematismo mental, afoiteza para comer melado. O que não quer dizer que os outros partidos tenham mostrado grande competência. A Nova República, montada por Tancredo Neves (José Sarney respeitou o esquema deixado por Tancredo) teve um desempenho geral tão patético que o povo no primeiro turno de 1989 só votou em quem era de fora: Collor, Lula, Brizola e Covas. Nos oito anos de FHC, muitos tucanos se enrolaram na própria plumagem e houve ministros e funcionários da base aliada de então que deixaram triste memória. Que dizer do racionamento de energia elétrica de 2001? Que dizer das políticas de segurança pública do governo federal e dos governos estaduais nos últimos vinte anos?

Quanto às outras duas hipóteses de Beraba, o cansaço da platéia e a blindagem de Palocci, podem não ser a pedra de toque da explicação, mas que existem, existem. Não são barreiras intransponíveis. Se houver uma escalada de denúncias, o interesse do público pode retornar ao patamar de excitação que houve de junho (primeira entrevista de Roberto Jefferson) a setembro. E o ministro Palocci, embora tenha uma atuação importante, não é super-homem, não é santo, nem é insubstituível. A resistência da blindagem depende do calibre da munição.

Essa vulneração não deve ser cobrada da mídia pelos adversários ou inimigos do governo. Aqui não é a Venezuela.

Como reconheceu a Veja, num súbito ataque de lucidez, ‘a imprensa não tem função e muito menos poder de polícia ou de promotoria, muito menos de Justiça’. Parece incrível que se tenha de ler isso numa revista. Uma declaração ao mesmo tempo plausível e inverossímil. [Postado às 9h37 de 7/11/2005]