Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Pauteiros e editores entre o ritual e a notícia

A semana que passou foi exemplar, com a imprensa econômica oscilando entre o jornalismo vivo e atento e a mais desanimadora rotina. Alguns dos fatos mais interessantes e mais importantes foram tratados sem alarde, como o desafio lançado à indústria nacional pelo presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, e o plano do governo de usar dinheiro do FGTS para obras de infra-estrutura. Em contrapartida, pauteiros e editores foram incapazes, mais uma vez, de evitar o ritual quase religioso quando se tratou da revisão dos juros pelo Comitê de Política Monetária (Copom).


O Copom tomou a decisão prevista por todo mundo. Cortou 0,5 ponto porcentual da taxa básica de juros, a Selic. Mas o leitor não foi poupado. Os jornais seguiram o ritual completo. Antes da reunião, consultaram os especialistas de sempre e registraram previsões já conhecidas. Depois, coletaram os comentários de sempre – da Fiesp, da Federação do Comércio, da CNI, da Força Sindical etc. – e publicaram tudo aquilo que qualquer leitor poderia recitar antes de ler os jornais. A maioria dos grandes jornais gastou pelo menos duas páginas com esse blablablá.


Mas também houve animadores, embora discretos, sinais de vida jornalística. Um desse foi o tratamento da entrevista do ministro da Fazenda, Guido Mantega, sobre reservas internacionais versus dívida externa pública. O recado foi transmitido – o Brasil é hoje credor líquido – e o material foi completado com duas informações essenciais: 1) o ministro cumpriu ordem presidencial de trombetear os feitos do governo; 2) dados oficiais distribuídos no mesmo dia desmentiram um detalhe da entrevista, mostrando que situação semelhante havia ocorrido em 1998.


Condição essencial


Sem barulho, alguns jornais ofereceram matérias importantes para a avaliação do estado real da economia e da política econômica. A Folha de S.Paulo dedicou quase meia página, no domingo (23/7), ao plano do governo de usar dinheiro do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para financiar obras de infra-estrutura em associação com investidores privados. O assunto, segundo a matéria, vem sendo estudado no Ministério do Trabalho, com as bênçãos do presidente, ‘que deverá obter dividendos eleitorais com a medida’.


O governo tem usado generosamente recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para financiar o setor privado. Logo mais, se a idéia for aprovada, poderá dar nova destinação a mais um patrimônio dos assalariados, o FGTS. Além de servir à sua finalidade principal – constituir uma poupança e um seguro para o trabalhador –, o FGTS já é destinado legalmente a programas habitacionais e de saneamento.


Será preciso discutir muito bem qualquer nova aplicação desse dinheiro e este parece um momento pouco adequado para isso, especialmente por causa dos interesses eleitorais envolvidos. Segundo a matéria, o representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no Conselho do FGTS, Luiz Gonzaga Tenório, apóia o novo plano. A CUT está envolvida na campanha de Lula e não se pode simplesmente menosprezar esse detalhe. Editores e pauteiros terão de ficar muito atentos ao assunto, se não quiserem ser omissos.


Além do mais, é preciso lembrar que a falta de fundos para o investimento público é em grande parte reflexo da má gestão orçamentária e de escolhas estratégicas do governo. Por exemplo: especialistas têm atribuído a retração dos investidores, no caso dos projetos de eletricidade, à orientação escolhida pelas autoridades quando regulamentaram o setor. Depois, houve um enorme atraso na aprovação das normas para as Parcerias Público-Privadas (PPPs), que poderiam favorecer a aplicação de capitais privados em obras de infra-estrutura.


Enquanto o governo distribui bondades fiscais – como a nova renegociação dos impostos atrasados –, falta dinheiro tanto para obras quanto para serviços de grande importância para a economia, como a defesa sanitária. Na semana passada, o Valor Econômico enriqueceu a cobertura sobre o foco da doença de Newcastle, detectado no Rio Grande do Sul, com alguns parágrafos assustadores sobre o sistema de controle. Os laboratórios federais precisam de quase dois meses para uma identificação de vírus que seria realizável em três ou quatro dias com a técnica mais moderna.


Isso não é assunto ‘apenas’ para criadores de animais e exportadores de carnes. É um dado fundamental para o julgamento das políticas econômica, agrícola, de abastecimento e de comércio exterior. Tudo isso fica evidenciado quando se trata do tema com alguma competência. Vigilância sanitária é uma das condições essenciais à operação de um setor que produz a maior parte dos mais de 40 bilhões de dólares de superávit comercial.


Competição global


No domingo (23), o Estado de S.Paulo deu matéria sobre a suspensão, por vários governos, da importação de frangos do Rio Grande do Sul e sobre a situação das granjas e frigoríficos gaúchos. Uma retranca auxiliar apresentou uma recapitulação de problemas comerciais ligados às falhas de controle sanitário e mencionou algumas deficiências do sistema, como a escassez de pessoal.


Mas o assunto é raramente discutido com alguma profundidade. Os mesmos editores que noticiam em manchete a redução da vulnerabilidade externa parecem menosprezar o mundo real em que os dólares são ganhos. Um surto de aftosa pode causar mais perdas cambiais ao Brasil do que as oscilações financeiras de curtíssimo prazo provocadas por uma declaração do presidente do Fed, o banco central americano, Ben Bernanke. Mas Bernanke é tratado como um arauto do Apocalipse, mesmo quando suas palavras prenunciam apenas um pequeno ajuste de juros nos Estados Unidos.


Na mesma semana, a maior parte dos jornais deu pouca importância ao aviso do presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, à indústria brasileira: se as empresas nacionais não se prepararem, terão dificuldades para atuar como fornecedoras da estatal nos próximos anos. A Petrobras planeja investir 87 bilhões de dólares entre 2007 e 2011. Cerca de 70 bilhões de dólares serão destinados a projetos no Brasil. Se a indústria nacional estiver não pronta para as encomendas, disse Gabrielli, a empresa terá de comprar de estrangeiros para não atrasar seus planos.


A história é especialmente interessante porque a Petrobras tem uma tradição de preferência a fornecedores brasileiros. Mas é também uma empresa com projeção internacional e planos ambiciosos, e não pode perder o passo. Além disso, tem de levar em conta os interesses de seus acionistas privados.


O desafio, portanto, não vem dos grupos estrangeiros globalizados, mas de uma grande estatal brasileira – considerada, por muitos, um símbolo do sucesso das políticas de velho estilo. Em suma: é a venerável Petrobras que chama ao setor privado brasileiro para o grande rally da competição global. Esse dado poderia ser mais um gancho para boas matérias sobre a inserção global da economia brasileira, mas o assunto só ganhou algum espaço na Gazeta Mercantil e no Estadão.

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Jornalista