Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Pedofilia e jornalismo de resultados

O último noticiário sobre o suposto ‘acobertamento de pedofilia’ por parte de Joseph Ratzinger é mais uma daquelas reportagens pré-moldadas em cima de leituras enviesadas de documentos verdadeiros. Ou seja: uma vez definido o lide da notícia, saem à cata de quaisquer fatos ou folhetins documentais que, no fim das contas, servem para preencher o molde que dará forma ao monstro. Saliente-se que não estou me referindo ao ‘conjunto da obra’ dos acobertamentos de pedofilia dentro da Igreja. Assim sendo, entenda-se este texto não como uma defesa do cidadão Joseph Ratzinger – e sim, como uma refutação ao mau jornalismo.

A reportagem doNew York Times é daquelas que já deveriam ter nascido mortas – considerando-se a falta de nexo de algo que, por fim, acaba até desviando o foco dos vários outros casos graves de pedofilia dentro da Igreja que merecem ser apurados e denunciados. Mas não: no momento precisam centrar fogo na pessoa de Joseph Ratzinger. E, numa reação em cadeia, todos os noticiários saem repetindo a mesma coisa. Pois, para o jornalismo de resultados, nada interessa senão a espetaculosidade, a qualquer custo, de um escândalo envolvendo uma pessoa célebre, ainda mais sendo o papa. Afinal, é isto que vende notícia, não? Ora, se há uma denúncia grave a ser feita, que esta seja alicerçada em argumentos sólidos que venham a encorpar de forma coerente o enredo da reportagem. E o que estamos assistindo?

Cabe ao leitor julgar

Para clarear a coisa, vamos tentar sintetizar a notícia:

Joseph Ratzinger, na condição de cardeal na década de noventa, teria recebido cartas (internas à Igreja Católica, saliente-se) alertando sobre os abusos sexuais praticados pelo padre Lawrence Murphy que calharam na polícia e na justiça norte-americana. E as cartas pediam, segundo a reportagem, ‘providências para restaurar a confiança da comunidade’. E vem a acusação: na época, Ratzinger, que respondia pelo destino dos padres, ‘nunca respondeu as cartas’. Já aqui, o leitor vê coisa grave. Pois releia e tente enxergar a carga semântica da oração capitaneada pelo ‘nunca’ com verbo no pretérito perfeito: ‘Nunca respondeu as cartas’. Mas, deste propósito de incriminar Ratzinger, atente-se para o paradoxo: se o teor das cartas era para apontar o problema para que, enfim, fossem tomadas providências para ‘restaurar a confiança da comunidade’ (leia-se ‘remediar a imagem da Igreja’), então qual o crime em não respondê-las? Ou melhor: o que responder se (segundo documentos levantados pela própria reportagem) as providências já teriam sido tomadas pela própria Igreja local e o assunto já estava a cargo da justiça norte-americana? Mas o pior não é isto.

O que segue na reportagem é o próprio desmonte do escândalo em cima do papa – mas que, considerando o cunho demolidor da notícia (‘Papa acoberta pedofilia’), acaba ficando estéril ao leitor menos atento. Lembre-se que ‘acobertar’, no caso, traz não apenas o sentido de ‘proteger’, mas também de ‘patrocinar’; ‘dar condições’; ‘ser conivente’… Você pode não simpatizar com o papa, mas de jeito algum parece plausível que isto tenha acontecido. Ao menos neste caso.

Pois a reportagem diz que o caso chegou ao conhecimento do então cardeal Ratzinger vinte anos depois dos abusos cometidos pelo padre Murphy, ou seja, quando este já se encontrava recluso, velho e doente. Ainda, quando Ratzinger recebeu as cartas, Murphy já tinha sido parcialmente suspenso de suas funções e já respondia a um processo aberto pela diocese de Wisconsin e também pela justiça comum que, diga-se de passagem, não deu andamento ao caso. Murphy então, muito adoentado, teria escrito a Ratzinger dizendo-se arrependido pelo que fez e pedindo o fim do processo. O processo então (dentro da Igreja) foi arquivado e pouco tempo depois Murphy viria a falecer. Se isto foi um ‘acobertamento de pedofilia’ por parte de Joseph Ratzinger, cabe ao leitor julgar – e não à imprensa sentenciar.

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Professor, Juiz de Fora, MG