Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Plebiscito já – para todos

Engajada na maratona de derrubar ministros, nossa mídia está esquecendo outros deveres tão importantes quanto o de acabar com a corrupção e a improbidade na administração pública.

Imprensa e cidadania são gêmeas siamesas, inseparáveis, uma serve à outra. Nosso inesgotável acervo de mágicas conseguiu, porém, que caminhem separadas, geralmente às turras. Se a imprensa pretende reassumir-se como Quarto Poder deve lembrar que esta é uma tarefa full-time, com dedicação exclusiva – bico, biscate e regime de meio expediente não criam um ambiente de responsabilização e transparência.

Exemplo da desatenção e descaso da mídia dita nacional é o plebiscito que no próximo dia 11 de dezembro deverá decidir sobre a divisão do atual território do Pará em mais dois estados.

A propaganda da Justiça Eleitoral no rádio e na TV já está convocando o eleitorado paraense – residente no estado ou fora dele – para a consulta popular. Legítimo. A Constituição de 1988 prevê a criação de novos estados federativos e territórios desde que ouvida a “população diretamente interessada” (artigo 18, parágrafo 3º).

Manifestação embargada

Algum editorialista especializado em investir contra o Estado paquidérmico e os escorchantes impostos lembrou-se de assestar suas baterias contra o novo assalto ao Erário?

Algum dos eminentes colunistas desceu do pedestal das suas transcendências para cuidar de assunto tão insignificante como o de triplicar as despesas de uma unidade federativa – uma dos maiores – num momento em que o mundo inteiro empenha-se em cortar despesas para enfrentar a crise econômica global?

Algum pauteiro lembrou-se de mandar um repórter ouvir juristas e filólogos para discutir o exato significado e as implicações do advérbio “diretamente”? A população diretamente interessada no assunto é apenas aquela com domicílio eleitoral no Pará? Os demais contribuintes não têm o direito de se manifestar sobre o destino do seu rico dinheirinho? Melhorar o SUS e a deplorável qualidade do ensino básico em todo território nacional não interessa diretamente à população brasileira?

A fabulosa despesa mensal para pagar mais dois governadores e respectivas cortes, mais 50 secretários, pelo menos mais uma centena de deputados estaduais, batalhões de magistrados, procuradores, promotores de justiça, policiais, professores, médicos, não seria mais bem aplicada na diminuição das desigualdades sociais e melhoria de nossos índices de qualidade de vida no próprio estado do Pará, na Amazônia ou na periferia das grandes cidades brasileiras?

Os repórteres que cobrem o Tribunal Superior Eleitoral não souberam que, em 9 de julho de 2011, o eminente constitucionalista e professor Dalmo de Abreu Dallari entrou com uma representação na qualidade de cidadão arguindo essa absurda descriminação contra o cidadão-eleitor-contribuinte dos demais estados, proibido de manifestar-se sobre uma questão que o afeta diretamente e cuja fatura será certamente obrigado a pagar? [Ver abaixo a íntegra da representação.]

Três macaquinhos

É possível que ruralistas, desmatadores e matadores, políticos com ficha dúbia e barões do crime organizado amparados em pareceres “técnicos” encontrem argumentos em defesa da nova fragmentação do antigo Grão-Pará. A mídia precisa ouvi-los. Também os especialistas em segurança nacional sobre os perigos de tornar ainda mais despoliciadas, mais porosas e perigosamente permeáveis as fronteiras do norte do país.

O que não se pode, sob qualquer hipótese, é embarcar cegamente nessa aventura secessionista, alucinada e falsamente nacionalista, sem um debate verdadeiramente nacional.

Ao contrário dos três macaquinhos sábios que só queriam o bem, a macacada midiática nada vê, nada ouve e nada diz. Adora ser passada para trás.

 

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A silenciosa cumplicidade – Dalmo de Abreu Dallari

***

Representação ao Tribunal Superior Eleitoral

 

EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

 

DALMO DE ABREU DALLARI, brasileiro, casado, Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, sob nº 12589, tendo a Inscrição Eleitoral nº 60812601-67, Zona 005, Seção 0073, do Município de São Paulo, […], vem, respeitosamente, na forma do disposto na Lei nº 9265, de 12 de Fevereiro de 1996, em seu artigo 1º, inciso III e V, e no exercício de seus direitos de cidadania, que, no presente caso, coincidem com os direitos de toda a cidadania brasileira, expor e afinal requerer o que segue.

1. Em sessão administrativa realizada no dia 30 de Junho último, essa egrégia Corte tomou conhecimento dos Decretos Legislativos nº 136/2011 e 137/2011, ambos determinando a realização de plebiscito para consulta à população sobre a criação de novos Estados mediante desmembramento de áreas do Estado do Pará. Dando execução a essas determinações, foram aprovadas instruções para a realização do plebiscito, com a fixação de datas e o estabelecimento de outras diretrizes. Ficou, então, estabelecido, como foi divulgado pela imprensa, que deverá participar do plebiscito, manifestando sua vontade, toda a população diretamente interessada e não apenas a das áreas que se pretende desmembrar.

Entretanto, na divulgação das decisões adotadas naquela sessão administrativa vem sendo atribuída a essa colenda Corte uma interpretação restritiva, evidentemente equivocada, da expressão “população diretamente interessada”, que consta do artigo 18, § 3º, da Constituição, onde está prevista a possibilidade de desmembramento dos Estados para a formação de outros, assim como do artigo 4º da Lei nº 9709, de 18 de Novembro de 1998, que regulamentou a execução do disposto no artigo 14 da Constituição, que trata dos direitos políticos. O que se tem divulgado é que na expressão “população diretamente interessada” estão compreendidas a população da área que se pretende desmembrar e, além dessa, apenas a população do restante do Estado cujo desmembramento é pretendido. Assim, estaria excluída, apesar de seu evidente interesse direto na decisão sobre o desmembramento, toda a população do restante do Brasil.

Como elemento esclarecedor, é importante rememorar que sob influência da Constituição de 1946 desenvolveu-se no Brasil intenso movimento municipalista. E em muitos Estados foram externadas propostas de distritos que pretendiam sua emancipação, convertendo-se em Municípios. E para tornar mais viável sua aspiração tentaram sustentar que bastaria uma consulta aos moradores do próprio distrito. Contra essa pretensão prevaleceu a diretriz de que deveria ser ouvida toda a população diretamente interessada, que, no caso, era a população de todo o Estado, pelas consequências que decorreriam da criação de novos Municípios. Naquela oportunidade não se cogitou da criação de novos Estados, mas tem perfeita aplicação a esta hipótese a conclusão de que para a criação de novas unidades políticas, com a inevitável conseqüência de repercussão sobre os direitos e interesses dos que residem fora do âmbito dos que pretendem a emancipação, é necessário, jurídico e justo ouvir toda a população interessada. E isso tem aplicação tanto à criação de novos Municípios quanto de novos Estados.

2. Antes de tudo, é importante assinalar que tanto na Constituição quanto na Lei nº 9709 o que consta, sem nenhuma delimitação, é a expressão “população diretamente interessada”, nada autorizando, nem pela redação dos dispositivos nem pelo significado das palavras e a intenção inerente ao seu conteúdo, que se considere população interessada apenas aquela do Estado cujo desmembramento se pretende. O que se determina é que seja ouvida a população diretamente interessada. Ora, basta considerar os aspectos principais das consequências que resultarão da criação dos dois novos Estados, que é o que se pretende em relação ao Pará e que deu ensejo à convocação do plebiscito, para que fique absolutamente claro que a população diretamente interessada é, nesse caso, toda a população brasileira.

Com efeito, não é preciso qualquer esforço interpretativo para se perceber que a criação de novos Estados na federação brasileira, pelo desmembramento de um Estado ora existente, afetará seriamente os direitos políticos, que são direitos fundamentais, de todo o povo brasileiro, além de criar pesados ônus que deverão ser suportados por todo o povo. Assim sendo, é mais do que óbvio que uma proposta para a criação de novos Estados interessa diretamente a todo o povo brasileiro e não só às pessoas que residem no Estado que se pretende desmembrar.

Como primeira advertência, é preciso lembrar que com a criação dos novos Estados, que, obviamente, ainda não terão renda, haverá, desde logo, a necessidade de que os cofres federais, ou seja, toda a população brasileira, pague a instalação do aparato governamental, ou seja, o governo do novo ou dos novos Estados com sua sede para o Poder Executivo, suas Secretarias e todas as repartições necessárias, com o indispensável equipamento, para o desempenho dos encargos que são de competência estadual. Acrescente-se a isso a necessidade de um Legislativo estadual e um Poder Judiciário, todos com instalações apropriadas para a instalação, o funcionamento e as comunicações, como também, obviamente, com os titulares ocupantes dos cargos, além do equipamento e do funcionalismo indispensáveis para o desempenho das funções e o relacionamento externo. Tudo isso representando um elevado ônus financeiro, que deverá ser suportado por todo o povo brasileiro, afetando seriamente seus interesses. Não há dúvida, portanto, de que a população diretamente interessada na decisão sobre a criação de novos Estados é toda a população brasileira.

Além dos elevados ônus econômico-financeiros que recairão sobre todo o povo brasileiro, o que, obviamente, é do interesse direto de toda a população brasileira, acrescente-se ainda que serão direta e imediatamente afetados os direitos políticos de todo o povo, pois o mesmo eleitorado do Estado do Pará, que hoje elege três Senadores, que é o número de representantes de cada Estado, passará a eleger nove Senadores, ou seja, três para cada Estado, o que, obviamente, irá aumentar o peso político daquele eleitorado, reduzindo o peso e a influência dos eleitores de todos os demais Estados. E haverá também um desequilíbrio dessa espécie na Câmara dos Deputados, pois segundo a Constituição cada Estado deverá ter um mínimo de oito Deputados federais, o que significará um aumento de, pelo menos, dezesseis deputados, sem que tenha aumentado o número de eleitores. Também sob esse aspecto é mais do que óbvio que a decisão de criar novos Estados é do interesse direto e imediato de toda a população brasileira e não apenas dos eleitores do Estado cujo desmembramento se propõe.

A par de todos esses aspectos, que envolvem relevante interesse público de amplitude nacional, é fundamental ter em conta que, segundo disposição expressa da Constituição da República, em seu artigo 18, parágrafo 3º, “os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito”. Essa é uma determinação de natureza constitucional, que nenhuma lei e nenhuma autoridade ou instituição pode ignorar ou contrariar. Pelo que acima foi exposto, toda a população brasileira é diretamente interessada numa proposta de subdivisão ou desmembramento de Estados, pois tais medidas acarretarão graves conseqüências, diretas e imediatas, sobre os direitos políticos, que são direitos fundamentais, e os interesses de toda a população do Brasil. Será, portanto, inconstitucional um plebiscito sobre proposta de desmembramento de um Estado para a criação de outros que não tenha amplitude nacional, que não dê a toda a cidadania brasileira a possibilidade de externar sua opinião.

3. Além de tudo o que foi exposto, e que já é mais do que suficiente para deixar muito evidente o interesse direto de toda a população brasileira numa decisão sobre a criação de novos Estados, existem ainda outros aspectos que devem ser lembrados, por afetarem também diretamente os interesses de toda a população brasileira: um deles é a redução da participação dos atuais Estados na distribuição de fundos federais constitucionalmente previstos e outro é o elevadíssimo custo do aumento dos cargos de representação política – Senadores e Deputados Federais dos novos Estados – nos órgãos representativos federais.

Quanto à distribuição dos recursos financeiros do fundo de participação, a Constituição, na parte referente à Tributação e ao Orçamento, inclui uma Seção especialmente dedicada à Repartição das Receitas Tributárias, na qual, entre outras coisas, está prevista a entrega de parte do que for arrecadado pela União a um Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal, prevendo-se também a distribuição aos Estados de parte da arrecadação federal proveniente de outros tributos. Obviamente, o aumento do número de Estados acarretará a redução da quota cabível a cada um dos Estados ora existentes, com a consequência óbvia de que os atuais Estados receberão quinhão menor para aplicação nos serviços de sua responsabilidade, em prejuízo de suas respectivas populações. Estas, portanto, são diretamente interessadas na decisão sobre a criação de novos Estados, também sob esse aspecto.

A par disso, é muito alto o custo da manutenção dos parlamentares federais, Senadores e Deputados, incluindo os subsídios e adicionais, o custo dos respectivos gabinetes e assessores, a manutenção de escritórios nos Estados de origem, o pagamento de viagens e de participações em eventos, tudo isso montando a muitos milhões de reais. E a cobertura dessa elevada despesa deverá ser feita com recursos federais, oriundos, obviamente, da contribuição de toda a população brasileira. Não pode haver dúvida de que também sob esse aspecto, e por essas implicações, toda a população brasileira é diretamente interessada numa decisão sobre a criação de novos Estados.

4. Conforme previsto nas instruções emanadas dessa colenda Corte sobre a realização do plebiscito, haverá uma fase prévia destinada à propaganda, durante a qual os propositores e defensores da criação dos novos Estados deverão demonstrar que é viável, conveniente e oportuna, ou mesmo necessária, tal criação. Quando da discussão da matéria no Congresso Nacional vários parlamentares abordaram essas questões, sustentando a necessidade de demonstração da viabilidade técnica, econômica e social. A par disso, foi lembrado o considerável aumento da despesa pública que resultará da criação dos novos Estados, o que demanda também uma cuidadosa ponderação, tendo em conta, entre outros fatores, que grande parte da população brasileira ainda é carente do atendimento de suas necessidades fundamentais e não tem plenamente assegurado o respeito à sua dignidade humana, que é um dos valores fundamentais da República expressos na Constituição.

A transmissão das informações básicas à população brasileira, com a demonstração dos benefícios que irão resultar da criação dos novos Estados, dará os elementos necessários para que a cidadania brasileira, diretamente interessada na decisão, como foi aqui demonstrado, manifeste sua vontade, num saudável e valioso exercício de democracia participativa.

5. Por tudo o que foi exposto, é absolutamente necessário, em respeito aos princípios inerentes à soberania popular, proclamada na Constituição brasileira como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, que toda a cidadania brasileira possa manifestar seu pensamento e externar sua vontade sobre uma proposta que tem por objetivo a mudança da organização político-institucional do Estado brasileiro, de modo a afetar os direitos e interesses de toda a população.

No artigo 14, “caput”, a Constituição diz que “a soberania popular será exercida” pelos meios que a seguir enumera e entre os instrumentos para esse exercício está expressamente referido o plebiscito, o que é mais do que suficiente para evidenciar a importância desse meio de consulta para aferição da vontade do povo. Comentando esse dispositivo, o eminente constitucionalista José Afonso da Silva observa que “a soberania popular é o princípio básico da democracia, segundo o qual “todo o poder emana do povo – princípio que revela um regime político em que o poder repousa na vontade do povo”. E mais adiante, tecendo considerações sobre o plebiscito e o referendo, observa que ambos são “consultas formuladas ao povo, para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa” (Cf. Comentário Contextual à Constituição, São Paulo, Malheiros, 2005, págs.214 e 223).

Assim, pois, a realização de um plebiscito para conhecer a vontade do povo sobre uma proposta de criação de novos Estados não é um privilégio que se concede a uma parte do povo, excluindo da participação a maioria desse mesmo povo, não tendo em conta seu interesse direto na conclusão, pelas graves consequências que dela decorrerão e que deverão ser suportadas pela totalidade do povo brasileiro. A concessão de um privilégio dessa espécie a uma parte da população brasileira, com o menosprezo dos direitos fundamentais do restante da população, seria evidentemente inconstitucional.

6. Com base em tudo quanto foi aqui exposto e demonstrado, pede-se, com todo o respeito, que esse egrégio Tribunal, no desempenho de suas altas responsabilidades, haja por bem expedir instruções, deixando claro que no plebiscito para consulta ao povo sobre o desmembramento de um Estado para a criação de novos Estados deverá ser assegurada a participação da totalidade da cidadania brasileira, uma vez que a decisão, expressão da soberania popular, é de interesse direto e relevante de toda a população do Brasil.

Assim determinando, essa colenda Corte estará dando estrito cumprimento ao disposto no artigo 18, § 3º, da Constituição e no artigo 4º da Lei nº 9709 de 1998., orientando para a aplicação correta e justa das determinações legais e assegurando o respeito às normas e aos princípios fundamentais da Constituição brasileira.

Nestes termos, pede e espera o deferimento.

São Paulo, 9 de Julho de 2011.

Dalmo de Abreu Dallari