Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Pluralismo sem bizantinismo

O “caso Xico Sá” mostra o quanto é possível avançar com um mínimo de transparência e, como corolário, desvenda o mundo de contradições produzido pelas gotículas de pluralismo oferecido por nossa mídia impressa, dita “burguesa”. Aliás, a única que consegue prosperar no reino do mandonismo – para nossa desgraça, a mídia nanica repercute mas não prospera.

Detalhes e prolegômenos do caso foram apresentados com isenção na coluna da ombudsman da Folha de S.Paulo, Vera Guimarães Martins, no domingo (19/10), com o título “O voto que só não diz o nome” (ver aqui). Os comentários da ouvidora oferecem os elementos básicos para discutir a questão com uma perspectiva menos simplista e panfletária.

A direção do jornal embargou o texto do colunista esportivo a ser publicado no dia seguinte (sábado, 11/10), onde declarava o seu voto em favor da candidata à reeleição, Dilma Rousseff. A direção ofereceu ao jornalista duas opções: publicar o texto na seção “Tendências/Debates” (página A3) ou mudar a sua formulação para não enquadrar-se como “proselitismo partidário”.

Judicialismo imperial

O colunista recusou, pediu imediatamente a demissão em protesto contra a cassação do direito de manifestar sua opinião e postou nas redes sociais uma diatribe contra os paradigmas da Folha e do resto da grande imprensa (ver aqui). Em seguida, sumiu do mapa, evaporou-se. Não retornava os recados e mensagens, inclusive da produção do programa de TV do Observatório da Imprensa que seria exibido na terça seguinte (14/10).

Por sua vez, a Folha também não se manifestou, nem explicou as razões da ausência do colunista. Os leitores bombardearam a ouvidora indignados com a liberdade gozada por outros opinionistas e negada a Xico Sá. Não conseguiam captar nem entender a diferença entre o elogio a candidatos & programas e o delito de praticar “proselitismo eleitoral”.

E não é para entender. O jornalão assume no caso a mesma sutileza daqueles que admitem um direito mas não permitem que seja exercido por inteiro. Este bizantinismo, visivelmente herdado dos colonizadores ibéricos, só floresce em sociedades e instituições insuficientemente permeadas pelo Iluminismo.

Direitos ou deveres devem ser claros, portanto absolutos, tolerados integralmente ou liminarmente negados. O jornalão parece ter assimilado do ambiente à sua volta um judicialismo tão intenso e tão imperial que em breve precisará de um STF intestino para dirimir as diferentes interpretações do seu código de conduta cotidiana, isto é, seu Manual de Redação.

Íntegra devida

Se um jornal se assume como pluralista, seus opinionistas devem gozar de plena liberdade para que este pluralismo seja visível, a olho nu. Se esta liberdade está sendo pervertida ou abusada, quem deve reclamar é o leitor, ou seu defensor: o(a) ombudsman.

Embargar um texto político na véspera de uma eleição é pênalti. A cobrança da falta, porém, só poderá ser consumada terminado o processo eleitoral. No meio do caminho, antes das urnas ligadas, merece cartão amarelo. Isso é pluralismo levado a sério. O resto é conversa mole pra boi dormir, como diria um dos mineiros que disputam a Presidência.

O “caso Xico Sá” comporta desdobramentos. Se o jornalista vítima de um ato arbitrário resolve espernear – o que se espera das vítimas de injustiças na esfera da comunicação social –, sua reclamação deve ser pública, notória, inequívoca. Protesto abafado ou envergonhado não é protesto, pode ser interpretado como manha. O rompimento com a tal “imprensa burguesa” deve ser perceptível. Se adotar a tática de que o bom cabrito não berra, estará fazendo o jogo daqueles que deveria condenar.

Xico Sá deve a seus companheiros de profissão e a seus leitores a íntegra do texto embargado (ver abaixo). Protesto na esfera da comunicação pede a boca no trombone. Com meia-boca não se vai a Roma.

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Em tempo: Às 19h40 de segunda-feira (20/10), a ombudsman da Folha publicou em seu blog a resposta de Xico Sá à sua coluna de domingo, bem como a íntegra do texto do jornalista vetado pelo jornal. Abaixo, a reprodução. (A.D.)

 

Xico Sá escreve à ombudsman

O jornalista e escritor Xico Sá enviou mensagem autorizando a publicação da coluna que acabou motivando seu pedido de demissão da Folha. O colunista conta que estava em viagem na Bahia, razão pela qual não se manifestou antes, e aproveita para esclarecer alguns pontos de vista divulgados em mensagens nas redes sociais.

Confira primeiro a mensagem e depois o texto original, na íntegra. (Vera Guimarães Martins)

 

Mensagem de Xico Sá

“Li a sua coluna de ontem e achei muito correta.

No que diz respeito aos tuítes de maldizer, quando faço desabafos, foi tudo no tom do “jus esperneandis”, para usar o jurisdiquês.

Havia publicado, nesse sentido, um tuíte com um velho grafite do anarquismo espanhol (“Não compre jornal, minta você mesmo”), dai a sequência da mentira, quando digo que menti pelos veículos a quem prestei serviço.

Obviamente que jornalismo é uma versão (mais próxima possível) da realidade. É nesse sentido que coloco a mentira.

Minhas reportagens sempre foram muito concretas e na grandisissíma maioria das vezes com prova material do crime a tiracolo: revelava, por exemplo, onde estava PC Farias, e dias depois trazia o homem (rs) preso de Bancoc ao Brasil. Revelava que os empreiteiros de SP estavam fazendo bingo para decidir sobre licitações fraudadas e levava o fotógrafo para fazer a foto do telhado ao lado, além de fornecer o resultado da jogatina. Quase sempre assim.

Tomara que o leitor desta Folha tenha alguma memória disso, e a minha biografia, como no seu acertado temor ao final da coluna, não fique manchada.

Sobre o texto vetado no caderno de “Esporte”, não se trata de proselitismo político nem tinha como objetivo declaração de voto. Escrevi uma crônica chamada de “Fla x Flu eleitoral”.

Tratei do desequilíbrio na cobertura dos jornais, sempre a favor de uma candidatura “x”.

Defendo que os jornais brasileiros deveriam adotar a linha de jornais americanos, que declaram seus candidatos, ficaria um jogo mais limpo com leitores.

O mesmo vale para os colunistas tendenciosos. Nesse contexto, pedi perdão a Bakunin (anulei o voto várias vezes por causa do pendor anarquista histórico) e, com humor típico da minha coluna, abri o voto em Dilma. O que julguei uma atitude mais limpa com meus leitores.

Recusei publicar o texto em muitos veículos que me procuraram, inclusive veículos concorrentes da Folha. Também não quis publicá-lo nas redes sociais. Em respeito a você, libero a crônica, caso deseje publicar, na íntegra e com o título, no seu espaço e somente no seu espaço.

Saudações gutenberguianas

 

Fla-Flu eleitoral

Se no primeiro turno foi Brasileirão de pontos corridos, agora, camarada, é Copa do Brasil, mata-mata

Amigo torcedor, amigo secador, mesmo com a obviedade ululante de PT x PSDB, eleição não é Fla-Flu, eleição não é sequer Atlético x Cruzeiro, Galo x Raposa, para levar a contenda para as Minas Gerais onde nasceram os dois candidatos do segundo turno.

Eleição não é um dérbi clássico como Guarani x Ponte Preta, eleição é tão mais rico que cabe, lindamente contra o voto, meus colegas anarquistas na parada, votar simplesmente no nada, nonada, como nos sertões de Guimarães Rosa, sempre na área.

Fla-Flu, embora exista antes do infinito e da ideia de Gênesis, nego esquece em uma semana. Futebol nego esquece no 25º casco debaixo da mesa, afinal de contas, como dizia meu irmão Sócrates Brasileiro, futebol não é uma caixinha de nada, futebol é um engradado de surpresas sempre dividido com amigos de todos os clubes.

Doutor Sócrates Brasileiro que foi mais pedagógico, um Paulo Freire da bola, com a Democracia Corintiana, do que muitas escolas. Doutor Sócrates, Casagrande e Vladimir nos ensinaram mais sobre a ideia grega do “poder do povo e pelo povo” do que toda aquela imposição de Educação Moral e Cívica dos generais das trevas.

Foi-se o tempo que viver era Arena x MDB, era Brahma x Antarctica. Até porque eles hoje são a mesma coisa, a mesma fábrica, a mesma Ambev que botou dinheiro de monte até na Marina evangélica –la não queria, mas o tesoureiro, talvez neopentecostal, pegou do mesmo jeito de todo mundo, vai saber, já era.

Eleição é coisa de quatro anos, no mínimo, pois até quem diz que não quer mais compra um aninho de luxúria e sossego iluminista em Paris, como já vimos no caso do FHC, comprovado em um dos maiores furos desta Folha, reportagem do grande Fernando Rodrigues, parlamentar comprado a preço de mensalão superfaturado.

Cadê a memória, a mínima morália, como diria Adorno, jornalismo safado?

Quem dera eleição fosse apenas o Fla-Flu que dizem. Quem dera fosse apenas um cordel que poderia ser resumido na peleja do playboy danadinho contra a mulher durona. É tudo mais complexo, ainda bem, e se no primeiro turno foi Brasileirão de pontos corridos, agora, camarada, é Copa do Brasil, mata-mata.

Como sou favorável à linha dos jornais americanos que declaram voto, coisa que meu jornal aqui teimosamente não encampa, queria deixar claro da minha parte: voto Dilma, apesar do meu pendor anarquista. Perdão, Bakunin, mas meu voto é contra a imprensa burguesa.

Digo que o jornal que me emprega não encampa e justiça seja feita: nunca me proibiu de dizer nada. Nem no impresso nem no blog. “Bota pra quebrar, meu filho”, lembro do velho sr. Frias nessa hora, que cabra!

Seria legal que todos os jornalistas, que têm lado sim, se declarassem. Quem se apresenta para tornar as coisas mais iluminadas?