Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Poderia ser diferente?

Interrogar a realidade em estudo, traçar sua história, dinâmica e conseqüências são passos necessários à compreensão dos fenômenos sociais. Sem eles corre-se o risco de manter-se na superfície dos acontecimentos e ter sua opinião e ações manipuladas por quem gera os fatos ou os dissemina.

O papel da mídia na recente crise política, que abalou os autoproclamados fundamentos ideológicos e morais do governo da República e do partido ao qual pertence o presidente, requer que se percorram aqueles passos. Exige, portanto, observação sistemática do contexto, dos atores e dos fatos para tornar possível avaliar suas primeiras e prever suas futuras conseqüências. Isto certamente está sendo feito em vários espaços acadêmicos e é de se supor que eventos científicos da área das Ciências Sociais Aplicadas, particularmente do campo da Comunicação, se transformem, em 2006, em arenas privilegiadas para o debate de estudos feitos com base nessas observações.

É possível, contudo, arriscar alguma análise preliminar sobre o problema, sem realizar observação sistemática da realidade, nem tampouco percorrendo caprichosamente aqueles passos. Trata-se de especular, é verdade, numa área que crescentemente exige ser abrigada mais em estudos do que em ensaios. Mas, dado que as ressalvas estão honestamente feitas e que a intenção do veículo que encomenda o texto é apenas levantar aspectos polêmicos do problema, é legítima a especulação que aqui se faz.

O ponto que se quer destacar é o da falha da mídia, no seu papel de consciência crítica da sociedade e, portanto, observadora atenta e permanente dos pensamentos, palavras e obras dos poderes da República. Isto é, vigilante do erário e dos processos e produtos do exercício da democracia, em todos os planos da vida social.

Pois bem, hoje se sabe, segundo denunciado inicialmente por um deputado, apurado por várias instâncias e noticiado pela mídia, que o tipo de esquema arrecadatório de recursos financeiros, oriundos, direta ou indiretamente, do erário, não deixou de existir com o desmantelamento do governo Collor. Continuou-se a montar esquemas similares, ou a dar prosseguimento a outros já então existentes, dos quais estão sendo descobertos muitos dos montados na era Lula e alguns oriundos da era FH.

Mas assim como a mídia somente soube dos esquemas dos tempos de Collor por força de uma dissensão familiar, foram desentendimentos na ‘família política’ do atual presidente que trouxeram às luzes pretensamente escaneadoras da mídia a corrupção e os desvios morais do chamado primeiro governo de esquerda do Brasil.

Importantes atores do esquema de corrupção (se não principais como formuladores, pelo menos cruciais como executores) circularam com desenvoltura no mundo político e econômico, antes, durante e depois das eleições de 2002 e jamais tiveram seus passos e caminhos investigados seriamente pela mídia. Delúbio Soares deu entrevistas – uma das quais à revista Época, bastante comentada pelo cinismo e arrogância do entrevistado –, foi sistematicamente visto circulando de forma suspeita por gabinetes ministeriais, palácios presidenciais e empresas de porte, mas isto foi insuficiente para despertar com determinação o espírito investigativo da mídia. Marcos Valério, mais discreto, mas nem tanto, igualmente circulou pelos meandros palacianos, pelo Congresso Nacional e até mesmo ousou apresentar-se (temo que, se depender da mídia, morreremos sem saber se autorizado ou não a fazê-lo) como representante do governo brasileiro para negócios escusos a serem realizados na pátria-mãe Portugal.

Inserção submissa

Na verdade, pelo menos no que se refere à era Lula, desde seu início, o mundo presidencial girava impávido, montado em aparências conceituais construídas num largo espectro, que abrangia do mais puro neoliberalismo (Palocci) ao mais acintoso populismo (o próprio Presidente). Nada de novo, portanto, já que esta fórmula é tradicional no Brasil e na América Latina. Nenhuma novidade que se possa tomar como causa da obstrução da acuidade do olhar crítico, pescrutador e necessariamente suspeitoso que deve ter a mídia, com relação a qualquer governo, autoproclame-se ele de esquerda, direita, de centro, bi ou multidirecionado. Sua preferência, ao contrário, recaía, de maneira inobjetiva, na cobertura da pauta fixada pelos marketeiros e feiticeiros palacianos.

Colhida de surpresa por uma fonte de passado considerado moralmente condenável – Roberto Jefferson –, a mídia finalmente despertou. A ‘família política’ do presidente estava rompida e, de alguma forma repetindo a história, chegara a hora de se conhecerem as entranhas do governo, suas relações perigosas, seus processos amorais, enfim, a dinâmica do poder tal como animada e conduzida pelo primeiro governo de esquerda do Brasil. E aí foi o que se viu: uma enxurrada de coberturas, muitas de qualidade discutível, além de fantasiosas, desprovidas de evidências aceitáveis, sem base em fatos. Outras, apenas reproduzindo fontes, muitas vezes claramente comprometidas com os atos objeto de denúncia. E várias outras, a bem da verdade, buscando escancarar a verdade, investigando a fundo o que se denunciava e garimpando fatos novos.

A mídia como um todo, enfim, na cobertura dos escândalos da era Lula, deixou-se incorporar nas lógicas dominantes da crise: de um lado, o governo, dedicado ao controle e à manipulação da chamada opinião pública, tentando, a todo custo, desqualificar fontes e fatos que o incriminavam; de outro, os adversários do governo, igualmente voltados para o domínio da opinião pública, buscando carimbar como honestas e verdadeiros aquelas mesmas fontes e fatos. E assim prosseguiram e prosseguem, seguindo os caminhos que um e outros lhe apontam.

Poderia ser diferente? Sem dúvida que sim. Mas, para começar a mudar, é preciso aprofundar os questionamentos sobre o tipo de jornalismo que estamos fazendo e as políticas vigentes, para evitar sua inserção submissa nas estruturas e lógicas das fontes dominantes dos mundos político e econômico.

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Jornalista, professora-colaboradora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora do Curso de Jornalismo da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC) de Salvador, bacharel em Comunicação e mestre em História Social pela UFBA, PhD em Mídia e Comunicações pela University of London; jornalista, mestre em Ciências Sociais pela USP e PhD em Comunicação pela University of Westminster, Londres; professor-titular do Instituto de Ciência da Informação e docente dos programas de pós-graduação em Comunicação e em Ciência da Informação da UFBA, tendo publicado livros e artigos em revistas acadêmicas nacionais e internacionais