Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ponderações sobre uma forma perversa de abordar a realidade

No dia 24 de maio, o jornal O Estado de S. Paulo, o Estadão, publicou reportagem sobre as representações políticas dos estados sediadas em Brasília. Na matéria, as representações parecem existir prioritariamente para ajudar os governos estaduais e os municípios a arrebatar verbas federais. O texto transmite a idéia de que tudo gira em torno da sede por recursos, sem, no entanto, usar sequer uma linha para informar sobre o sentido de conseguir esses tais recursos. Parece que estados e municípios ficam, em Brasília, se acotovelando para conseguir dinheiro da União, quase que simplesmente pelo dinheiro.

Cabe ponderar que quem assim pensa são as corporações jornalísticas em geral. Afinal, como já dissemos em outro artigo (publicado aqui mesmo neste Observatório há duas semanas), não consideram muito o seu público, chamado ambiguamente de opinião pública e tratado como rebanho, não como um conjunto de cidadãos. Para conseguir dinheiro, para elevar seus lucros, vendem, inclusive, a ‘alma do negócio’ jornalístico, que é fornecer subsídios para a formação da esfera pública. Aliás, mais precisamente, vendem a alma e ficam somente com o negócio. Vendem desinformação – pois informação pela metade deve assim ser chamada – e confundem os interesses de outrem com os seus próprios desejos: faturar, lucrar acima de tudo, custe o que custar.

Os estúdios e a sanha voraz

Nem todo governador ou prefeito age dessa forma, nem todo governador ou prefeito vai a Brasília simplesmente ‘de olho nos recursos’ ou ‘embalado pela propaganda governista do PAC’. Com certeza, há os que assim agem, mas certamente não se pode colocar todos no mesmo saco. Há muitos governadores e prefeitos, provavelmente a maioria, que vão em busca de formas de melhorar a vida da população de seus estados e municípios, seja em forma de recursos ou de outros modos de concretizar esse objetivo. Há, aí, uma diferença sutil de abordagem. Sutil, mas determinante para entender a função de um homem público.

As empresas jornalísticas tratam o político como se fosse um mero comerciante. Mas, não o serão os empresários do jornalismo, que têm feito da notícia uma reles mercadoria a ser exposta nas bancas, nas telas de TV, nas ondas dos rádios e na tela dos computadores? Nem um político pode ser um mero comerciante, ao menos na sua vida pública, nem a notícia é meramente mercadoria. Político não é eleito para ser mascate e jornalismo não existe para agradar a patrocinadores. Há uma perversão ética se não se entende isso. E há um distúrbio moral, tanto nos casos em que homens públicos agem imoralmente, quanto nos casos em que a imprensa os trata, generalizadamente, como amorais ou imorais. Trata-se de uma atitude covarde e incorreta, tanto com a classe política quanto com a população em geral.

De forma surpreendente, na reportagem em questão, a existência de estúdios de televisão na Secretaria de Representação do Paraná também foi incluída nessa sanha voraz por dinheiro do governo federal. Esses estúdios foram criados para produzir material jornalístico, com a proposta de melhor informar a população sobre as ações do governo e, principalmente, sobre os grandes temas da política nacional, não para angariar fundos. A função dos estúdios foi informada à jornalista que assina a matéria, inclusive a produção de um programa de entrevistas capitaneado pelo excelente jornalista Carlos Chagas. No entanto, nada disso foi dito.

A tese da parcialidade

Talvez a citada jornalista não conheça o sentido do conceito de ‘esfera pública’, criado por Jürgen Habermas para definir a promoção de um amplo espaço de debates sobre as forças que determinam os caminhos políticos de uma sociedade. Talvez não saiba que a criação e promoção dessa ‘esfera’ é um dos elementos mais preciosos da vida democrática. É possível que por esse motivo não tenha dado importância a isso e não tenha achado profícuo informar os seus leitores sobre essa iniciativa. Ou, se sabe, preferiu não tocar no assunto, talvez pelo motivo de que isso não faça muito sentido para ela.

Outro tópico a ser considerado diz respeito ao tema do nepotismo. A matéria informa que ‘essas representações, no entanto, acabam servindo também para abrigar aliados, parentes e ex-mulheres’ e, seqüencialmente, diz que o governador do Paraná nomeou seu irmão, um dos autores deste texto, para a referida representação. Quer dizer, está diretamente sugerido que o governador usou a representação de seu estado para empregar um de seus familiares. Apesar da jornalista, durante a entrevista, ter manifestamente considerado esse familiar dotado de uma visão ampla e diferenciada da vida política, isso não foi dito na reportagem, como não foi também mencionado que um parente pode ser competente antes de ser parente. No jornalismo, isso se chama parcialidade.

Interessante é saber que as corporações jornalísticas brasileiras se estruturaram em torno de grupos familiares, inclusive a que edita e publica o Estadão. Na certa, se os patriarcas dessas famílias entendessem seus descendentes como incompetentes, não os teriam feito herdeiros de seus empreendimentos. Assim como, com toda certeza, se o governador do Paraná entendesse que o seu irmão fosse um indolente em busca de boa vida, não o nomearia para um cargo tão importante, como não o faria se o entendesse como um ‘atravessador’ de recursos federais. Isso nos parece claro. Pode não ser tão claro para o jornal ou para a jornalista, respeitamos isso. O que não é possível respeitar é que, a priori, a verdade do jornal ou da jornalista prevaleça sem contraditório. O bom jornalismo se caracteriza pela exposição de pelo menos duas versões do fato, diga-se claramente. Novamente, se impõe a tese da parcialidade.

Atribuir aos outros os próprios defeitos

Prevalecendo essa versão, isso nos permite pensar que há um preconceito norteando a matéria. Uma pré-concepção do que seja um parente nomeado para um cargo político, algo como uma condenação: é parente, é nepote. Tem vínculo de sangue com um governante, não pode fazer política. É da mesma linhagem? Deve exilar-se, mudar para outra cidade, outro estado ou mesmo outro país para exercer plenamente a sua cidadania. Ou que vá para a oposição, quem sabe.

A posição que a imprensa adota em relação à nomeação de parentes tem o mesmo fundamento do racismo. O racista entende que a maldade ou a inferioridade do outro está marcada pelos genes, pelo sangue. O sujeito é pré-julgado como mau, impuro, torpe, antes mesmo que se possam perceber suas reais qualidades e defeitos e o quanto tem a oferecer à sociedade.

A caça indiscriminada a parentes nomeados para cargos políticos que a imprensa promove tem, essencialmente, as mesmas raízes que geraram o fascismo, o nazismo e tantas outras doutrinas que pregam a condenação prévia do ser humano por supostas impurezas já presentes em sua essência antes mesmo que se possa dizer humano. Aliás, pelo que vimos observando na imprensa, um parente de um homem público nem sequer pode ser chamado de gente, sob o ponto de vista democrático, pois tem sua cidadania limitada de forma brutal. Para a imprensa, a Súmula 13 tem funcionado, na verdade, como um AI-13, e o mesmo Estadão, que se manifestou tantas vezes contra a censura da ditadura militar, exibe, agora, a intolerância dos déspotas.

Resumindo, há uma abordagem perversa da realidade por parte da dita grande imprensa. Enquanto agem como meros mercadores, dizem que são outros que assim o fazem. São parciais, manipulam fatos, mas quando se toca nesse tema, dizem-se vítimas do cerceamento de sua liberdade. Crescem em torno de famílias e acusam os políticos de empregar familiares. Geralmente, quando questionados em relação a isso, argumentam que o político lida com dinheiro público e com ele paga seus parentes. Ora, é curioso observar que as empresas jornalísticas prestam um serviço público e, como tal, lidam com dinheiro que o público lhes destina para esse serviço que, tudo indica, não têm prestado adequadamente. Ao que parece, estamos diante de uma atitude sociopática que se caracteriza por atribuir aos outros os próprios defeitos e, com petulância, denegri-los por isso.

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Respectivamente, jornalista e secretário da Representação do Paraná em Brasília