Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Por que os tiranos adoram o escândalo Murdoch

É difícil dizer se o escândalo que abala a News Corp. representa o início da queda da Casa de Murdoch ou se é apenas outro episódio emocionante na carreira do magnata da Teflon. Mesmo sem especulações, já há bastante espetáculo. Nem é este o lugar para comemorar as dificuldades de um concorrente. É verdade que fucei em meus arquivos e saboreei as cartas indignadas que recebemos dos principais editores do News of the World no ano passado, quando nos preparávamos para publicar uma investigação sobre a cultura de escutas clandestinas do jornal e a timidez da Scotland Yard – um trabalho que se mostrou plenamente justificado nas últimas semanas. Mas mesmo que seja verdade que os problemas de Murdoch ameacem exaurir a cota mundial de prazer com a desgraça alheia, como dizem os gozadores na internet, não pretendo entrar no jogo.

Um aspecto do escândalo, entretanto, não recebeu a atenção merecida. Ele cabe na rubrica “danos colaterais”. Outro diz, eu conversava com um amigo sul-africano, ex-jornalista, que observou que o escândalo das escutas clandestinas não podia vir num momento pior para seu país. Nelson Mandela deixou como legado à África do Sul uma das Constituições mais liberais do mundo, em alguns aspectos até mais abrangente que a nossa em suas garantias de liberdade. (Proíbe a discriminação baseada em opção sexual; assim, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é reconhecido como legal, na África do Sul, desde 2006.)

Na prática, entretanto, o atual governo é menos tolerante para com vozes dissidentes do que era Mandela e o partido que governa propõe agora a criação de um Tribunal para Recursos de Mídia, para julgar queixas contra a imprensa. “Você pode ter certeza que eles irão usar as sequelas das escutas clandestinas para fortalecer seus argumentos”, disse meu amigo, acrescentando, um pouco irritado: “Ninguém dá muita atenção às consequências de uma coisa destas em países pequenos, como o nosso.”

O pagamento a policiais

A triste verdade é que sempre que aqueles que se orgulham de suas liberdades ficam aquém de seus ideais, podem ocorrer consequências em lugares onde a liberdade é mais precária. Os déspotas adoram ver uma imprensa livre comportar-se mal. Quando Jayson Blair foi flagrado inventando matérias neste jornal, ele tornou-se uma prova global no caso contra uma imprensa sem restrições. Mais ainda: eles adoram ver um governo livre reagindo mal. Quando o nosso governo equipara o jornalismo à espionagem, esses proselitistas sorriem desdenhosamente: “Até nos Estados Unidos…”

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, que está tentando salvar uma carreira que, em parte, dependeu do apoio de Murdoch, tranquilizou os tiranos do mundo inteiro ao propor restrições a uma imprensa que já está cercada por leis draconianas contra a calúnia e por um decreto oficial contra o sigilo. Em visita à Nigéria – que, por sua conta, recentemente imitou o lado bom da Grã-Bretanha aprovando uma lei de liberdade de informação –, o primeiro-ministro reivindicou a criação de algum tipo de regulação “independente” da imprensa para coibir abusos como escutas clandestinas. É claro que há outra opção, menos drástica: simplesmente por a polícia para fazer valer a lei vigente.

E quem não se sente à vontade com as intenções de Cameron poderia preocupar-se um pouco com o nosso Departamento de Justiça, que investiga se a empresa de Murdoch, que também tem sede nos Estados Unidos, violou a lei de Práticas de Corrupção no Exterior quando pagaram a autoridades policiais em troca de dicas. Isso parece ser um uso amplo e ameaçador de um estatuto que foi criado para eliminar o suborno como meio de obter regulações comerciais ou favoráveis de governos estrangeiros. (A respeito disso, concordo inteiramente com a página editorial do Wall Street Journal, que normalmente não é meu manual preferido sobre comportamento da imprensa.)

A resposta de Putin

Não estou particularmente alarmado com o fato da Grã-Bretanha ou os Estados Unidos reduzirem significativamente as proteções que nos permitem reivindicar a responsabilidade de nossos governos – até, e inclusive, as matérias explosivas, como as que o WikiLeaks revela. Mas a tradição de uma imprensa agressiva não está tão enraizada assim pelo mundo afora.

“Existem tantos exemplos – da Venezuela a Ruanda, do Equador à África do Sul – onde isso é uma questão candente”, disse Joel Simon, diretor-executivo do indispensável Comitê de Proteção dos Jornalistas, quando lhe perguntei sobre a preocupação de meu amigo sul-africano. “E também é verdade que tanto Jayson Blair quanto Judy Miller foram usados pelos governos para justificar suas próprias políticas repressivas.” Simon relembra, por exemplo, que cada vez que sua organização visitava o embaixador venezuelano para denunciar leis repressivas contra a imprensa do presidente Hugo Chávez, o embaixador destacava que mesmo os Estados Unidos, que com tanto orgulho se protegem pela Primeira Emenda, detém repórteres como Judy Miller por se recusarem a revelar suas fontes.

Poucos países têm a prática da Rússia em se tratando de distorcer a imagem dos Estados Unidos. Quando, alguns anos atrás, Mike Wallace, no programa 60 Minutes, perguntou a Vladimir Putin sobre o hábito do Kremlin de interferir na cobertura jornalística, ele respondeu: “Você não sabe que alguns jornalistas norte-americanos foram demitidos por causa de suas posições sobre o Iraque ou sobre a campanha eleitoral para presidente?” Putin referia-se a Dan Rather, que deixou seu trabalho como âncora da CBS de maneira nebulosa, após ter divulgado informações duvidosas sobre a carreira militar de George W. Bush. Está vendo? Até nos Estados Unidos…

A “sociedade mais transparente do mundo”

O primeiro regime opressivo que pegou o trem das novas escutas clandestinas – pelo menos, o primeiro que eu vi – foi o do Zimbábue, confiável como nunca. Um observador africano do Comitê de Proteção dos Jornalistas enviou-me na semana passada um despacho do serviço de imprensa estatal citando os defensores de Robert Mugabe sobre o escândalo do News of the World: “Um analista da mídia, Alexander Rusero, disse que o escândalo das escutas serve de lição ao terceiro mundo, pois o conceito de liberdade de imprensa é um mito. O próprio Ocidente não consegue praticar o que prega.”

Algumas tentativas de constranger a liberdade de imprensa são mais compreensíveis do que outras. Não é difícil explicar por que Ruanda, ainda não completamente refeita do massacre étnico que teve origem em fanáticos do rádio, iria procurar maneiras de regulamentar o que é chamado de “divisionismo” na mídia. Os militares egípcios tem razões para temer que sua instável proto-democracia possa ser abocanhada por extremistas islâmicos, o que é um pretexto para restaurar o Ministério da Informação, que controla a mídia, após ter sido abolido depois da queda de Hosni Mubarak.

Autocratas serão autocratas, com ou sem nosso mau exemplo. Robert Mugabe e Hugo Chávez continuariam sendo tão hostis a uma imprensa sem restrições se nenhum jornalista britânico tivesse jamais grampeado um telefone ou se os Estados Unidos não tivessem detido Judy Miller. Mas será que realmente queremos ser expostos como modelos para a repressão?

Eu esperava que Rupert Murdoch pudesse usar seu dia no desconfortável assento do Parlamento para esclarecer esse ponto. Em vez disso, ele ofereceu-nos Cingapura – a 152ª entre 195 nações no índice de liberdade de imprensa – como a “sociedade mais aberta e mais transparente do mundo”, onde os ministros do governo são pagos com tanta generosidade que não são tentados à corrupção e, assim, presumivelmente, não há necessidade de uma imprensa bisbilhoteira. Aposto que isso saiu em todos os jornais da Cingapura.

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[Bill Keller é editor-executivo do New York Times]