Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Por que precisamos de jornais

No domingo (3/5), o suplemento ‘Cultura’ do Estado de S.Paulo publicou a entrevista que o jornalista americano Gay Talese concedeu a Lúcia Guimarães (ver aqui). Lá pelas tantas, a entrevistadora perguntou: ‘Por que nós precisamos de jornais?’


Nessa interrogação quase cândida se concentra uma silenciosa aflição. Para muitos observadores, os jornais vêm-se distanciando de sua missão essencial. Dedicam-se a variedades, a frugalidades, até mesmo ao entretenimento, mas fraquejam quando se trata daquilo que só eles, por serem jornais independentes, podem fazer: fiscalizar o poder, explicar os fatos, debater as ideias que fazem diferença, de modo atraente, agressivo e esclarecedor. Se não cuidam do essencial, para que, então, servem os jornais?


Pense você mesmo, leitor. A maior parte dos cadernos que os assinantes recebem diariamente não os ajuda em nada. Basta nos lembrarmos do modo como iniciamos a leitura do nosso diário preferido, logo pela manhã. Começamos por descartar o que não interessa. Descartamos calhamaços e mais calhamaços. Parece um contrassenso, mas a primeira atividade que um diário exige de seu público não é a leitura propriamente dita – é o exercício físico de jogar papel fora.


O exercício físico do leitor, sua ginástica matinal, é uma triste metáfora da situação da imprensa: ilustra com crueldade a irrelevância que lhe pesa nas mãos. Essa metáfora deveria fazer-nos pensar um pouco mais. A crise dos jornais é, de fato, muito grave: é uma crise de identidade, de padrão tecnológico, de mercado – e é uma crise mundial. Com poucas exceções, como o americano USA Today, eles declinam.


Nos casos ‘menos piores’, perdem leitores para si mesmos, ou seja, perdem leitores na versão em papel, mas os mantêm em suas versões eletrônicas, na internet. Tanto é assim que alguns dos maiores, como o The New York Times, já falam abertamente em acabar com suas edições impressas e investir todas as fichas na internet. Mas, aí, surge outro problema: como essas versões eletrônicas vão repor as receitas que vinham do papel? No ambiente da rede, como todos sabem, o conteúdo dos jornais é oferecido de graça, ou praticamente de graça. Será que o jornalismo independente poderá sobreviver se as notícias circulam de graça? Ele sobreviverá apenas com os recursos de anunciantes?


Relação espontânea


A instituição da imprensa depende do apoio direto dos cidadãos para se manter independente. Os principais jornais do mundo só prosperaram, nos séculos 19 e 20, porque tinham, na base de sua independência editorial, um negócio também independente, baseado na sustentação que recebiam dos leitores, que sempre pagaram pelas assinaturas e pelos exemplares avulsos.


O jornalismo impresso de qualidade não buscou alicerce na publicidade, mas no financiamento direto do público. Agora, se os sites jornalísticos passarem a depender só de anunciantes, o que acontecerá com a independência editorial?


Tudo bem: é verdade que as emissoras de rádio e televisão vivem exclusivamente de anúncios e nem por isso precisam abrir mão da independência. Mas elas sempre existiram num ambiente em que os jornais independentes, ao menos até aqui, ajudavam a fiscalizá-las, a elas também, e essa fiscalização as pressionava para que não traíssem seus compromissos com o público. Desse modo, a instituição da imprensa encontrou um ponto de equilíbrio quando soube manter, ao lado do modelo de negócio das emissoras (cujas receitas vêm exclusivamente da publicidade), o modelo de negócio dos jornais e revistas independentes.


O ponto de equilíbrio agora está em risco. Se a publicidade passar a ser a única financiadora do jornalismo – na internet e nas emissoras –, a instituição da imprensa ingressará num novo desequilíbrio, cujas consequências são, no mínimo, incertas. Não nos esqueçamos de que, quando paga pelo que lê, o público ajuda a bancar a independência da informação.


Há um significado político na relação econômica direta e espontânea – que não passa pelo Estado nem pelo mercado anunciante – entre o público e os veículos informativos. Se deixar de pagar pela informação, como a sociedade poderá sustentar sua imprensa livre?


‘Erros involutários’


Walter Isaacson, ex-diretor de redação da revista Time, defendeu recentemente uma fórmula para a venda de conteúdos jornalísticos pela internet. ‘Estabelecer um sistema de micropagamento (…) que permita, por meio de um clique, as aquisições de jornais, revistas, artigos, acesso a blogs ou vídeos, ao preço de US$ 0,05, US$ 0,10, US$ 0,50 ou seja quanto for que o seu autor deseje cobrar’ (ver ‘Como salvar seu jornal‘).


A sugestão de Isaacson talvez não seja a melhor, mas o impasse que ela busca resolver é mortal. Teremos de enfrentá-lo, de um modo ou de outro. Se a sociedade não remunerar sua própria imprensa, diretamente, não terá imprensa independente. E sem imprensa independente não terá como fiscalizar o poder. Aliás, não era justamente para isso que nós precisávamos de jornais, estejam eles sobre uma folha de papel ou numa tela de computador?


Voltemos agora à pergunta de Lúcia Guimarães. Por que precisamos de jornais?


Eis a resposta de Gay Talese:




‘Porque no prédio de qualquer redação de um jornal respeitável, a qualquer momento, há menos mentirosos por metro quadrado do que em qualquer outro prédio. Há mentirosos nos jornais também, mas em menor número. Nos prédios do governo, nas escolas, nas instituições científicas, nos estádios de esporte, nas fábricas, a mentira circula num grau mais alto. Os jornais estão mais interessados na verdade, mesmo se cometem erros, às vezes, erros involuntários.’


Nesta hora crítica, só o compromisso com a liberdade e com a verdade pode reconduzir o jornalismo à sua essência – e só isso poderá despertar a sociedade para o valor da imprensa livre.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP