Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quando a mídia ajuda a desinformar

‘Ignorância política’ foi o diagnóstico feito por Gilberto Dimenstein na Folha de S.Paulo (16/4/2006) a propósito do desconhecimento da vida pública por parte dos brasileiros, detectado em pesquisas recentes. Dois exemplos:

1. ‘Apenas 16% dos eleitores recordam-se do mensalão, um tema que não sai do noticiário desde o final de junho de 2005;

2. ‘Apenas 20% dos brasileiros, segundo pesquisa CNT/Sensus, conhecem a norma da verticalização (…) fundamental para entender as chances dos candidatos a presidente e governador’.

O jornalista tem razão, trata-se mesmo de ignorância política, principalmente quando se leva em conta a melhoria da taxa de escolaridade nos últimos 20 anos, assim como o fato de que direitos políticos e eleições livres fazem hoje parte da rotina social. Vale acrescentar a estas ponderações outras, constantemente dadas à luz por analistas europeus: as massas deixaram de prestar atenção à política, a não ser em suas formas delituosas – e mesmo assim, em índices reduzidos, como bem atestam os 16% que se lembram do mensalão.

A questão não pára aí, porém. O filósofo francês Alain Badiou – que, aliás, conhece razoavelmente bem a situação política brasileira – introduz a variável do ‘afeto público’ na análise do fenômeno político. Levando-se em conta o estado emocional das massas é, para Badiou, simplesmente falso que o voto seja a expressão da liberdade das opiniões. O voto, na realidade, seria sufocado pelo que ele chama de ‘princípio do homogêneo’, isto é, todo mundo pode ser candidato, mas só podem chegar aos lugares ‘precodificados’ do poder possível aqueles que se encaixam, homogenicamente, em uma norma determinada. Em termos mais claros, ocupam os postos do ‘poder possível’ (a margem de mando político permitida pelo poder econômico) aqueles que não vão fazer nada essencialmente diferente de seus antecessores.

Manifesto de paixão

O ‘princípio do homogêneo’ garantiria o conservadorismo do voto. Isto bem se traduz na frase do político francês Alain Peyrefitte dirigida aos socialistas e comunistas, em 1981: ‘Vocês foram eleitos para mudar o governo, e não para mudar a sociedade’.

O exemplo pode ser francês, mas o princípio é global. Até um certo limite, direita e esquerda podem ser homogêneas ao sistema jurídico-parlamentar, o que faz da alternância político-partidária no poder uma mera estratégia espontânea de conservação do sistema tal e qual se apresenta. Entre a alternância do entusiasmo e da rejeição, o afeto público balança como uma gangorra e, para se defender das violentas emoções, é capaz de bloquear a atenção e a memória coletivas.

Esta é, claro, apenas uma interpretação, entre outras também possíveis, para o fenômeno da desafeição da política. Contra isto, nada tem conseguido fazer a imprensa – à qual Hipólito da Costa, nosso primeiro jornalista, atribuía a função de instruir politicamente o povo.

A nossa imprensa arrisca-se a perder o horizonte cívico em meio ao excesso de detalhes negativistas do real. O jornal de cada dia está-se convertendo num manifesto de paixão à celebridade, seja a incensada, seja a desprezada. A fama é a ponte entre o bem e o mal, a cada dia atravessada industrialmente pela mídia. Numa conjuntura dessas, o que em política pode haver de positivo e de heterogêneo deixa de interessar e, certamente, de formar espírito público.

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Jornalista, escrito, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro