Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quando a notícia viola direitos individuais

Não são raras as oportunidades em que a mídia se vê diante de dúvidas, ainda longe de serem dirimidas a contento: até que ponto nós, jornalistas, temos a liberdade de divulgar os fatos, documentos, imagens, áudios, que nos chegam às mãos? Seria a liberdade de imprensa, enfim, plena, absoluta, inatingível?

Mais uma oportunidade chegou a nossas mãos para análise. A rede de televisão norte-americana NBC recebeu, via correio, documentos diversos, inclusive arquivos em vídeo, do sul-coreano Cho Seung-Hui, o autor de uma das maiores tragédias da história contemporânea, o assassinato de 32 estudantes da Escola Politécnica do Estado de Virgínia. São imagens fortes, que mostram o estudante sul-coreano apontando uma arma para a câmera, para a cabeça, mostrando-se perturbado, um indivíduo com nítida intenção de cometer a loucura que acabou cometendo, inclusive tirando a própria vida.

Porém, as imagens acabaram causando a indignação de alguns familiares das vítimas do massacre de Virgínia, que decidiram cancelar entrevistas que fariam à rede NBC em sinal de protesto. Também, pudera, com a dor que ainda carregavam no peito ainda tiveram que assistir, via TV, a imagem do assassino de seus entes queridos, jovens que buscavam futuro promissor através da universidade, em um país desenvolvido, maior economia mundial – mas também o mais belicoso país do mundo, com um governo belicoso e uma legislação igualmente belicosa, incentivadora do medo, da violência.

Audiência significa dinheiro

A NBC, à revelia dos parentes das vítimas – que ficaram indignados com as imagens exibidas – decidiu mostrá-las. Teria sido o momento adequado para tanto? É certo que os fatos devem ser narrados com precisão, fidelidade, mas é certo também que a empresa jornalística – e, por extensão, os jornalistas – pode e deve, em determinados casos, abortar, pelo menos por instantes, a amostra de imagens alusivas a uma comoção recente, que abalou não só os familiares, parentes e amigos das vítimas do massacre, como toda a sociedade norte-americana.

É certo também que, em um país cujo governo propaga a violência como forma de resolver os conflitos, e cuja produção cinematográfica espalha pelos quatro cantos do mundo filmes ditos de ‘ação’, recheados de cenas extremamente violentas e muitas vezes exibidos em horários ditos familiares, o noticiário chocante, com imagens fortes, chama mais a atenção de seus consumidores em potencial do que o noticiário político, econômico, cultural, esportivo.

A rede NBC, presume-se, sabia que as imagens eram por demais fortes, sabia que estava diante de uma cobertura única de um fato histórico, sabia que a transmissão de tais imagens iria gerar repercussão, seja positiva ou negativa; mas sabia, principalmente, que iria gerar audiência. Na meca do capitalismo, para os canais de televisão, audiência significa dinheiro jorrando pelo ralo, para a emissora, para os anunciantes…

Conseqüências da divulgação

É igualmente certo que o diretor de jornalismo da NBC, Steve Capus, argüiu, em defesa da empresa, que só foi mostrada uma pequena parcela das imagens que chegaram à sede da emissora, via correio, mandadas pelo serial killer sul-coreano. De outro modo, quem é do ramo sabe que um jornalista que exerça cargo de chefia ou de confiança em uma empresa jornalística se vê, diariamente, diante de decisões conflitantes a tomar a respeito de documentos como aqueles enviados para a NBC. Publicá-los, ou não? Se publicar, fazê-lo na íntegra, ou em parte? O que mostrarmos vai atingir a honra subjetiva de alguém, vai lhe causar desassossego, dor, angústia? Se não publicar, estaremos diante de um caso de omissão jornalística diante de um fato relevante? Não seria um ato de autocensura?

A atitude do diretor de jornalismo da NBC, antes de ser julgada, deve ser analisada com critérios. Mas não devemos nunca esquecer, na análise, de nos questionarmos se doeriam mais as conseqüências negativas em termos de audiência da emissora, no caso de não mostrar as imagens, ou os corações já por demais sofridos dos familiares das vítimas da chacina Universidade de Virgínia, que ainda têm de aturar, bem ou mal, a exploração de seu sofrimento em nome de um interesse dito jornalístico pela notícia.

Não se trata de censurar fatos, longe disso. Trata-se de mensurar as conseqüências de uma divulgação como aquela feita pela NBC, em um momento, repita-se, inadequado.

Divulgar é preciso. Mas viver está acima de tudo.

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Jornalista, Fortaleza, CE