Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quando o cinema vai à guerra

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Ditadores e democratas exploraram o potencial mobilizador das telas de cinema desde o seu surgimento, mas durante a Segunda Guerra Mundial, a sétima arte uniu-se aos aparelhos de Estado e foi à luta. O Observatório da Imprensa veiculado terça-feira (06/10) pela TV Brasil exibiu o segundo episódio da série de quatro programas especiais sobre os 70 anos do início do conflito, intitulado "Hollywood de Uniforme".

Desde a ascensão dos regimes fascistas ao poder até o último disparo, centenas de filmes foram produzidos tanto pelos países Aliados, quanto pelas potências do Eixo. De todos os centros de produção cinematográfica, Hollywood foi o mais emblemático. Abrigou imigrantes e refugiados e foi o responsável por clássicos, como "Casablanca". E mesmo após os tratados de paz, a guerra continuou presente e foi tema de filmes inesquecíveis, como "A lista de Schindler".

No editorial que abriu o programa, Alberto Dines explicou que o cinema de Hollywood enfrentou o nazismo antes mesmo do início da guerra. Desde a chegada de Hitler ao poder, em 1933, artistas e intelectuais deixaram em massa a Alemanha e se refugiaram em diversos países. "A Alemanha enxotou os seus escritores e artistas. Hollywood, a capital da fantasia, a fábrica do sonho americano, os acolheu de braços abertos e com eles construiu um formidável auditório mundial", disse.

Dines explicou que este centro de produção cinematográfica foi construído por imigrantes que logo perceberam o perigo do nazismo. "A 2ª guerra mundial foi uma guerra total e graças ao cinema, principalmente graças a Hollywood, a retaguarda não ficou distante das frentes de combate. Todos eram soldados", avaliou.

O fascínio das massas

O cinema foi intensamente usado como arma de propaganda política pelo regime nazista. Na década de 1930, Leni Riefenstahl foi escolhida para realizar uma série de filmes para exaltar a superioridade ariana. As imponentes cenas dos documentários "Triunfo da Vontade" e "Olympia", que retratam uma Alemanha organizada e próspera dos anos antes da guerra, foram exibidas repetidamente pelo regime totalitário. "Ela queria ser atriz em Hollywood. Não conseguiu, mas tornou-se a cineasta de Hitler, subordinada diretamente ao Führer", explicou. Leni Riefenstahl não era nazista, mas era "fascinada pela estética das massas". Neste mesmo período, o Reich produziu alguns filmes antisemitas como "Judeu Süss" e "O Judeu Errante".

Mesmo antes do início oficial da guerra, com a invasão da Polônia pela Alemanha em setembro de 1939, Hollywood já voltava-se contra o nazismo. Desde 1937, a Warner Bros. produzia filmes abertamente anti-hitleristas. Luiz Carlos Merten destacou que por força da depressão, outros estúdios preferiam fazer comédias escapistas e musicais, mas a Warner sempre teve uma acentuada preocupação social. "Eles produziam filmes de gângster, eles produziam um ciclo de prisões, um ciclo de filmes sociais, de diretores como Marvin Leroy, Michael Curtiz. E foi a Warner o estúdio que primeiro começou a se preocupar com essa coisa". Outro centro de produção que desde cedo alertou o mundo para o perigo do nazismo foi a United Artists, um estúdio de artistas do qual Charles Chaplin era um dos fundadores.

Alerta ainda antes da guerra

Uma produção deste período deixou o Fürer especialmente furioso: "Confissões de um Espião Nazista". Dines destacou que mesmo com os protestos de Hitler, o filme foi exibido porque "nos Estados Unidos o cinema não era censurado pelo governo". Houve grande polêmica durante o processo de aprovação do roteiro. O crítico de cinema Ely Azeredo explicou que o sistema de censura interna dos estúdios de Hollywood dificultou a exibição do filme.

"Joseph Brin que era o manda-chuva desse código de produção, procurou aconselhar a Warner de que eles poderiam perder o mercado na Europa com um filme dessa natureza e ponderava que Hitler criou um bem estar para o povo alemão. Enfim, colocando a Alemanha a ombrear com outras nações industriais. E que seria um erro comercial para a própria Warner. Ele falou, falou, mas os irmãos Warner bateram na mesa e disseram: ‘o filme vai’". Já em 1939, a Warner produziu "Sargento York", ambientado na Primeira Guerra Mundial. O personagem principal, interpretado por Garry Cooper, era um pacifista. "Ele tinha aquela decisão de não usar armas, de não combater. Sendo pacifista, ele acaba durante a guerra usando a arma, matando alguns semelhantes, e se convencendo de que em certas ocasiões, para salvar outras vidas, é preciso matar", disse Ely Azeredo.

Na linha de frente da guerra aberta de Hollywood contra a suástica, estavam refugiados alemães e austríacos, como Fritz Lang, Otto Preminger, Robert Siodmak, Douglas Sirk, Michael Curtiz e Fred Zinneman. "Outro grande nome deste período é Billy Wilder", disse Dines. Seu filme "Cinco Covas para o Egito" tinha como tema a guerra no deserto. "Os aliados acabavam de desembarcar no norte da África. Era preciso comemorar as primeiras vitórias contra os nazistas desde a queda da França. O marechal Rommel havia sido abatido pelos ingleses e Billy Wilder escolhe para personificá-lo um dos maiores cineastas alemães, Erich von Stroheim",explicou Dines. De tanto interpretar nazistas, o ator acabou se transformando em um protótipo do militar alemão.

A contribuição dos refugiados

"Houve um momento em que toda aquela gente, todos aqueles refugiados, que tinham ido da Alemanha, da França todos aqueles diretores, roteiristas, fotógrafos etc, todos em Hollywood começaram um trabalho de conscientização, que estava ocorrendo realmente, uma coisa incrível, horrível na Europa. E essa consciência foi se acentuando. O papel desses imigrantes europeus, foi determinante, foi muito forte", explicou Luiz Carlos Merten. Grandes diretores de Hollywood fizeram documentários sobre o conflito, John Ford, por exemplo, que fez um filme registrando a batalha de Midlleway.

E entre os refugiados franceses, o preferido de Ely Azeredo é Jean Renoir, que fez um filme sobre a resistência da Noruega. "Em relação aos alemães, em filme pequeno de poucas ambições. Mas ele fez nos Estados Unidos um filme maravilhoso chamado ‘Amor à terra’. Um filme passado entre agricultores sobre o sul dos Estados Unidos, extremamente realista", avaliou o crítico de cinema. Para Azeredo, o cinema americano é um cinema de emigração, nunca é um cinema "All American".

O riso contra a barbárie

Impressionado com a Noite dos Cristais, quando em 1938 uma série de ataques destruiu sinagogas e lojas de judeus na Alemanha, Charles Chaplin decidiu produzir um filme ridicularizando Hitler. Em 1940, estreou "O Grande Ditador". O filme foi censurado em diversos países, inclusive no Brasil. Chaplin vive dois personagens no longa-metragem: um barbeiro judeu e o ditador Hynkel. Dines destacou que a semelhanças entre os bigodes de Chaplin e Hitler não foi casual. "No inicio da carreira como agente provocador, Hitler queria no rosto algo que o tornasse imediatamente reconhecido. Escolheu o bigodinho de Charlie Chaplin, o comediante mais famoso no mundo", disse.

O jornalista destacou que Hitler viu o filme duas vezes e ficou furioso, pois os Estados Unidos e a Alemanha ainda mantinham relações diplomáticas. "O ditador considerou o filme como uma agressão, as alusões eram diretas demais: Hitler era Adenoid Hynkel, Göring era Herring, arenque, Goebbels era Garbish (em inglês, lixo). Ao contrário de "Tempos Modernos", Chaplin usou e abusou do som e da palavra falada. Há dois discursos: um deles do ditador Hynkel, uma sátira em alemão caricatural imitando as falas delirantes e histéricas do Führer. O outro (naturalmente em inglês) é pronunciado através do rádio pelo barbeiro judeu, fingindo que é o ditador. Dirigido à sua amada Hannah que, na realidade, era a então mulher de Chaplin, a rebelde Paulette Goddard. Um dos textos mais bonitos do cinema, seis minutos de amor à humanidade, de fé e esperança num mundo sem guerras", avaliou.

You must remember this

Em 1942, estreou aquele que seria considerado como o filme mais emblemático da Segunda Guerra Mundial: "Casablanca". Protagonizado por Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, o clássico da Warner Passado na cidade marroquina em poder dos franceses colaboracionistas mostra o dilema da personagem de Bergman dividida entre duas paixões. "A Suécia era neutra, mas a sueca Ingrid Bergman jamais vacilou em apoiar a causa anti-nazista", disse Dines. A produção do filme foi conturbada.

O roteiro era aprovado apenas na noite anterior às filmagens. "A história é toda implausível, escrita diariamente, a produção do filme inteiramente louca", comentou o crítico de cinema Sérgio Augusto. O final foi decidido pelo diretor Michael Curtiz durante a filmagem da última cena. Inesperadamente, o casal de protagonistas não termina junto. "Só o fato de o casal não ficar unido, haver uma renúncia isso já era uma grande novidade em Hollywood na época", disse Luiz Carlos Merten. O crítico de cinema explicou que o filme é carregado de códigos.

A produção de Hollywood não atingia apenas aos adultos. Ainda crianças no período da guerra, os escritores Luis Fernando Veríssimo e Moacyr Scliar contaram suas impressões para Dines. "Eu fiquei tão entusiasmado com aquilo que, nos meus brinquedos solitários, comecei a matar japoneses e alemães. Tanto, que até chegaram a me levar ao médico porque eu estava excitado demais com a guerra". Um filme que marcou Scliar foi "Passagem para Marselha", protagonizado por Humphrey Bogart, sobre a resistência dos franceses contra o nazismo. "Tem uma cena em que um jovem adolescente atingido por balas alemães morre gritando ‘vive la France e que a gente chorava. Aqueles filmes tinham uma grande capacidade de mobilizar o nosso sentimento, que era um sentimento nacionalista", relembrou.

A mobilização dos artistas

Artistas foram convocados para participar do esforço de guerra. Grandes nomes pegaram em armas e lutaram nos campos de batalha, como Clark Gable. Outros, fizeram parte do esforço de guerra hollywoodiano, como Marlene Dietrich e Carmem Miranda. John Wayne, por exemplo, virou herói de guerra na memória dos espectadores, sem ter dado um único disparo durante a guerra, como contou o escritor Ruy Castro. Sérgio Augusto comentou a idéia das Cantinas de Hollywood, que uniam oficiais, soldados e artistas em uma cavalariça alugada por Bete Davis. A iniciativa virou um filme: "Um sonho de Hollywood". Os atores lavavam pratos e serviam os soldados para transmitir a idéia de união. Em uma cena do filme, ao saber que estava dançando com a atriz Joan Crawford, um soldado desmaia.

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Hollywood de uniforme

Alberto Dines # editorial do programa n. 523, no ar 06/10/2009

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

Adolf Hitler começou a guerra através do rádio e quem o enfrentou antes de todos foi o cinema de Hollywood. Os nazistas apostaram na delirante doutrinação da nação germânica certos da sua superioridade: sozinha conquistaria o mundo. Os nazistas não contaram com o mundo, não contaram com a humanidade e sua infinita capacidade de produzir aproximações.

Empenhados em expulsar os indesejáveis, os nazistas esqueceram-se da capacidade de resistência dos refugiados. O Nobel de Literatura Thomas Mann, um dos primeiros a deixar a Alemanha depois da ascensão de Hitler, disse que "os nazistas queimaram os livros que não saberiam escrever". A Alemanha enxotou os seus escritores e artistas. Hollywood, a capital da fantasia, a fábrica do sonho americano, os acolheu de braços abertos e com eles construiu um formidável auditório mundial.

Hollywood foi construída por uma comunidade de imigrantes e estes imigrantes perceberam o perigo antes dos estadistas. O representante da Warner na Alemanha, Joe Kaufmann, foi morto por vândalos nazistas no pogrom da Noite dos Cristais, em 1938. No ano seguinte, Jack Warner começava a produzir filmes antinazistas que culminaram com Casablanca, inesquecível combinação de romance e idealismo político.

A mesma Noite de Cristais levou Charlie Chaplin a transformar o adorável vagabundo chamado Carlitos, num militante humanitário. Hitler era um cinéfilo, assistiu-o, ficou furioso, nada podia fazer apesar do seu poderio militar. Seus histéricos discursos no rádio não chegavam ao mundo, ao contrário do discurso final de Chaplin, transformado num hino internacional da paz.

A Segunda Guerra Mundial foi uma guerra total e, graças ao cinema, principalmente graças a Hollywood, a retaguarda não ficou distante das frentes de combate. Todos eram soldados. Hollywood não permitiu que os campos de extermínio, a solução final e o holocausto fossem encobertos pelas comemorações da vitória. Neste momento, o cinema bélico deu lugar ao cinema-atrocidade.

Esta outra guerra talvez nunca saia de cartaz.