Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quando o espetáculo vale mais do que a crítica

As recentes tragédias ocorridas em conseqüência das enchentes em Santa Catarina evidenciaram, entre outras coisas, a falta de cultura do Brasil no que se refere à Defesa Civil e, mais do que isso, a falta de um olhar crítico por parte da mídia de massa no tocante à responsabilização das autoridades no sentido de mudar este quadro de falta de estrutura para atender as vítimas de catástrofes. Em vez disso, o protagonismo ficou, mais uma vez, por conta do espetáculo.

As intempéries não avisam nem a hora e nem o lugar onde ocorrerão e, por isso mesmo, as sociedades devem estar organizadas para fazer frente aos desafios provocados pelas catástrofes, de maneira a minimizar, o máximo possível, os danos pessoais, materiais e psicológicos. Em muitas nações do mundo dito civilizado – a exemplo da maioria dos países europeus, bem como no Japão, na Austrália –, os governos já têm uma cultura de Defesa Civil, o que facilita muito a atuação quando da ocorrência de tragédias.

Mas no Brasil, desafortunadamente, nossos governantes ainda não ‘entenderam’ a necessidade de ações nesse sentido e, em conseqüência disso, continuamos no amadorismo, na confiança no ‘fator solidariedade’ e, claro, tudo isso aliado à conivência dos meios de comunicação de massa, que não cumprem o papel de porta-vozes da cidadania, deixando de realizar uma cobrança efetiva no que se refere à tomada de atitude do Estado para mudar o quadro. Pelo contrário, há um reforço à irresponsabilidade.

Garantia de dignidade

Na última semana, as várias redes de televisão, os impressos e as outras mídias, em sua cobertura rotineira sobre a referida tragédia, se ativeram apenas a espetacularizar o ocorrido e, em um caso especial, contribuíram para que o nosso país continue sendo vítima da irresponsabilidade dos seus respectivos chefes de governo: a TV Bandeirantes, em uma das edições do Primeiro Jornal, mostrando o trabalho dos prepostos da Polícia Militar nas operações de resgate, evidenciou quão irresponsável é sua cobertura, sem nenhuma capacidade de trazer à tona as fragilidades do Estado brasileiro que, em momentos como este, é motivo de vergonha no panorama mundial.

Ao entrevistar um piloto membro de uma unidade resgate, a referida reportagem, ao ter ouvido do entrevistado que ficava triste ao saber que as pessoas por ele resgatadas ficariam sem nenhum tipo de estrutura digna, em vez de ‘pegar o gancho’ da fala do policial-piloto para cobrar das autoridades responsabilidade no trato de questões como essa de Santa Catarina, apelou para elogiar a solidariedade do povo brasileiro. Desconsiderou a fala do entrevistado e supervalorizou o fato de o povo brasileiro estar demonstrando sua solidariedade para com as vítimas.

Não há dúvidas de que a solidariedade é extremamente importante. Mas, em casos como este, o que realmente faz a diferença é a atuação firme, determinada, organizada e estruturada do Estado, não somente viabilizando o resgate de pessoas, animais e bens materiais, quando possível, mas, aliado a isso, garantindo dignidade às vítimas, oferecendo-lhes abrigos decentes, com alimentação, camas, roupas e acompanhamento psicológico, como acontece nos países que contam com governos que respeitam sua cidadania.

A ‘miséria’ do jornalismo

A TV Bandeirantes demonstrou, com essa reportagem, o que já estamos ‘acostumados’ a ver, ler, ouvir cotidianamente dos nossos meios de comunicação: a criação de uma cena comovente, o apelo ao espetáculo, em vez de uma atuação mais efetiva no sentido de cobrar dos poderes públicos mais responsabilidade, mais efetividade na aplicação das verbas públicas – diga-se de passagem, expressivas –, considerando que o povo brasileiro é um dos que mais paga imposto no mundo inteiro.

Como bem afirma Guy Debord, ‘[…] o espetáculo, considerado sob o aspecto restrito dos ‘meios de comunicação de massa’ – sua manifestação superficial mais esmagadora – que aparentemente invade a sociedade como simples instrumentação, está longe da neutralidade, é a instrumentação mais conveniente ao seu automovimento total… O espetáculo é a conservação da inconsciência na modificação prática das condições de existência […]’ (2003, p. 16-17).

A sociedade brasileira está ‘órfã’, entre outras coisas, de um olhar crítico proporcionado pelos meios de comunicação – pelo menos aqueles que estão à disposição da maioria. Isto, aliado a outras mazelas (analfabetismo, analfabetismo funcional, analfabetismo político…) tem servido como um suporte deveras importante para a falta de atuação dos poderes públicos no que tange aos interesses sociais. Aqueles que estão à frente do Estado se valem dos discursos sofismáticos e vêm conseguindo se manter no poder pela via legal, ainda que sejam notadamente nocivos à sociedade. Os jornais – incluindo aí os telejornais –, por sua vez, têm servido para ‘a miséria do jornalismo brasileiro’, como bem afirma Juremir Machado da Silva, que critica certas práticas, entre as quais a conivência, a valorização do superficial, o avanço do sensacionalismo, entre outras questões.

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Doutora em História da Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid, professora da rede estadual de ensino do Estado da Bahia e do Curso de Comunicação Social da Faculdade 2 de Julho, Salvador, BA