Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quando o óbvio não é óbvio para todos

Sob o título-ônibus ‘O jornalismo’, o jornalista Ali Kamel publicou no Globo de terça-feira (23/1) o primeiro de pelo menos dois artigos sobre o inesgotável tema [pelo menos, porque ele faz referência a um próximo texto, mas não diz se outros virão em seguida].


O artigo [ver abaixo] se propõe a responder a uma pergunta que o debate recente sobre o comportamento da mídia brasileira colocou no ar. Nas palavras de Kamel: ‘O jornalismo é um campo de batalha de ideologias ou é uma forma de conhecimento da realidade?’


Ele prefere a segunda alternativa e explica por quê. A rigor, no entanto, as alternativas não se excluem.


A busca do conhecimento da realidade imediata – da verdade como ela pode ser identificada no dia-a-dia, com os recursos ao alcance de quem procura captá-la e transmiti-la, segundo um protocolo de procedimentos amplamente adotado na grande imprensa – não impede necessariamente que a ideologia se intrometa no processo, nem que isso ocorra com freqüência maior do que desejável.


Se assim não fosse, o problema da credibilidade da mídia não existiria ou, se existisse, estaria restrito a uma questão de técnica ou qualidade jornalística: se diria que o jornal A merece menos confiança do que o B porque este escolhe melhor, apura melhor e edita melhor do que o outro os assuntos do dia.


De todo modo, Kamel argumenta com razão que se se aceitasse que os órgãos de mídia devessem escolher os fatos a apurar e a transmitir de acordo com os valores de quem os escolhe, qualquer que fosse a sua presumível relevância para o leitor, o produto não seria jornalismo, mas publicidade.


Numa situação em que bastasse ao público conhecer claramente a posição de cada jornal para escolher aquele que melhor representa a sua verdade, ‘o objetivo dos jornais seria a cotidiana busca de adeptos de uma determinada visão do mundo. Fariam, então, propaganda; propaganda política, mas propaganda’. Resultado: ‘Os jornais estariam mortos ou definhando’.


‘Falsa convivência’


Kamel é saudavelmente ortodoxo ao sustentar que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Uma coisa é a posição do jornal [a expressão é deste leitor]. Outra coisa é o jornal narrar e analisar ‘de maneira lógica e isenta’ os fatos escolhidos pelo falível, porém insubstituível critério de sua relevância.


Nisso vai implícita a norma de que a pluralidade deve ser a regra geral ‘em tudo o que se faz em jornalismo, inclusive nas páginas de artigos, que devem espelhar as tendências da sociedade’.


Parece óbvio, mas não é. Primeiro porque, na imprensa brasileira, os artigos assinados de opinião espelham menos do que seria desejável as tendências da sociedade – principalmente quando se leva em conta a crescente gama de temas de interesse que vão além da política, da economia e da administração pública, compondo o que os estudiosos chamam a ‘agenda pós-materialista’.


É importante assinalar que esse ‘espelhamento’ é menos ou mais insuficiente, conforme o jornal ou conforme a questão em jogo.


O essencial é que quase todos os jornais concordam que a diversidade de opiniões deve estar presente em cada um deles, não em nome de um ideal democrático abstrato, mas para atender à expectativa do leitor.


Não é tão óbvio assim, em segundo lugar, exatamente pelo ‘quase todos’ do parágrafo anterior. Pois do consenso geral discorda ninguém menos do que o diretor de O Estado de S.Paulo, o mais tradicional dos grandes jornais brasileiros, Ruy Mesquita.


Em junho do ano passado, no discurso de agradecimento pelo Prêmio Woodrow Wilson de Serviço Público que acabara de receber, ele disse textualmente o seguinte:




‘Não se trata de forçar a falsa convivência, no mesmo espaço, de opiniões contraditórias, como querem os que visam apenas a diluir a resistência [à concentração da propriedade no setor de comunicação] dos que ainda lutam para oferecê-la, mas sim de voltar a fomentar a oferta de múltiplos espaços para abrigar a expressão da diversidade de ideais e de opiniões…’. [Itálicos acrescentados.]


Caso particular


Múltiplos espaços significando evidentemente múltiplos jornais, revistas e emissoras. E o público que os selecione pelo critério da afinidade.


Por isso, como este leitor já apontou neste espaço, as páginas de artigos do Estado, no primeiro caderno (com uma ou outra exceção) e no caderno de Economia (com exceção nenhuma), parecem clones da página de editoriais.


A julgar pelas cartas que o jornal publica, os leitores (de novo com uma ou outra exceção) ou não enxergam problema algum nessa uniformidade, ou simplesmente não a enxergam.


O que sustenta, por sua vez, a idéia de que não são os leitores que escolhem os seus jornais, mas são os jornais que escolhem os seus leitores – um caso particular da alegada regra geral de que a oferta cria a demanda, e não o contrário, como acredita o senso comum.


Mas essa já é outra história.


***


O jornalismo


Ali Kamel # Copyright O Globo, 23/1/2007


O ano que passou foi especialmente indutor de uma discussão que precisa ser enfrentada: o jornalismo é um campo de batalha de ideologias ou é uma forma de conhecimento da realidade? Já com alguma distância das eleições, que acirraram esse debate, a discussão pode ser travada com menos paixão.


No calor daqueles dias, pairou a idéia de que só existe jornalismo de tendências, uma imprensa de direita e uma imprensa de esquerda, uma tentando mais do que a outra impor as suas idéias. Não estavam em questão apenas os editoriais, mas o fazer jornalístico propriamente dito: a produção de notícias. O jornalismo estaria condenado a ser um campo de batalha de ideologias, estaria a reboque delas ou, pior, a serviço delas. Os jornais (impressos, digitais, radiofônicos ou televisivos) seriam feitos de acordo com os valores de seus donos e dos jornalistas que para eles trabalham. Para provar o que seria o óbvio, os partidários dessa tese lançavam mão de postulados filosóficos como se fossem platitudes: a verdade é inalcançável, isenção é uma utopia, não existe objetividade total. Assim, os jornais seriam feitos segundo as suas verdades e de acordo com os interesses de seu grupo. Os fatos seriam escolhidos, não por critérios de relevância mais ou menos reconhecidos por qualquer bom profissional, mas conforme os valores de quem escolhe. E ganhariam pouco ou grande destaque, seriam narrados e analisados dessa ou daquela maneira, segundo aqueles mesmos valores. Como quem pensa assim não se permite dizer ‘e o público que se dane’, o remédio sugerido por eles seria de uma simplicidade atroz: basta que o público conheça claramente a posição de cada jornal para que escolha aquele que melhor representa sua verdade.


Ocorre que, se fosse assim, não existiria jornalismo, mas apenas publicidade. O objetivo dos jornais seria a cotidiana busca de adeptos de uma determinada visão do mundo. Fariam, então, propaganda; propaganda política, mas propaganda.


E os jornais estariam mortos ou definhando. A sociedade não teria como se mexer, como andar: se não há verdade, se só há um relato de esquerda e outro de direita, como falar em fatos? Viveríamos numa sociedade sem referencial, num mundo de versões.


Nada disso. O jornalismo é uma forma de conhecimento, de apreensão da realidade, segundo um método próprio que, se seguido corretamente (e não são muitos os veículos que se esforçam por segui-lo), leva ao relato e à análise dos fatos com fidelidade. Muitos pensadores brasileiros pensam assim, mas, aqui, não quero citá-los, porque, embora concordemos com esse postulado geral, a partir dele os caminhos são bem diversos (e, assim, não quero correr o risco de que o leitor pense que me apóio na autoridade deles para corroborar o que aqui escrevo).


Diante de uma miríade de acontecimentos, os jornalistas são treinados para discernir que fatos têm relevância e narrá-los e analisá-los de maneira lógica e isenta. Isso implica acolher na análise os diversos pontos de vista, pois a pluralidade é regra geral em tudo o que se faz em jornalismo, inclusive nas páginas de artigos, que devem espelhar as tendências da sociedade. Opinião própria, apenas nos editoriais e sem repercussão no noticiário. Pode haver, portanto, jornais de esquerda e de direita, mas no que se refere a suas opiniões expressas em editoriais, jamais contaminando o noticiário, em nenhuma hipótese influenciando o que deve ou não ser noticiado. Como toda obra humana, o jornalismo está também sujeito ao erro, e erra em quantidade. A regra é a transparência: reconhecer o erro e corrigi-lo.


A prova dos nove de que isso é possível é a comparação entre jornais diferentes. Se compararmos o ‘Los Angeles Times’, o ‘Washington Post’ e o ‘New York Times’, que têm linhas editoriais muito distintas, notaremos com facilidade que é muito parecida a cesta de assuntos oferecida aos leitores. Se excluirmos os assuntos locais, a mesma comparação pode ser feita entre os três americanos e o ‘El País’, da Espanha, o ‘La Repubblica’, da Itália, e o ‘Daily Telegraph’, do Reino Unido: a coincidência também será grande. No Brasil, o leitor pode verificar que ‘Folha de S.Paulo’, ‘Estado de S. Paulo’ e O GLOBO, jornais com poucas afinidades e concorrentes ferozes, destacam sempre mais ou menos os mesmos assuntos. Não é falta de criatividade: é que os jornalistas que neles trabalham, profissionais treinados, sabem reconhecer num enxame de fatos o que é relevante e o que não é.


Mesmo o chamado jornalismo de opinião, em que o jornal ou a revista noticia os fatos, opinando todo o tempo sobre eles, se bem-feito, não se confunde com o que chamei de publicidade. Porque, neste caso, os veículos devem procurar ser isentos e plurais no relato e análise dos acontecimentos, mesmo que ofereçam ao leitor, ao lado da informação, o seu próprio ponto de vista.


Sim, se nem a ciência consegue alcançar a verdade e a objetividade total, como o jornalismo faria essa mágica? Não faz. Como a ciência, o jornalismo é uma aproximação da realidade, mas a melhor que se pode obter naquele instante com o instrumental disponível. É certo que um episódio – o apagão aéreo, por exemplo – daqui a 50 anos vai ser contado e analisado por historiadores com acesso a um material que os jornalistas não conhecem hoje: documentos secretos, atas de reuniões, depoimento dos envolvidos dado muito tempo depois. Daí emergirá um relato mais acurado do que o que os jornais conseguem fazer hoje. Mas os próprios jornais serão usados como fonte da História porque eles conseguem o que historiador algum será capaz de fazer sem eles: capturar o sentimento de uma época. A manchete ‘gritada’ sobre o apagão é ela própria, em sua forma, uma informação: dá conta da perplexidade que a sociedade vive naquele instante. A diagramação do jornal, a hierarquização das notícias, as fotos, são todos eles recursos que informam. Que ajudam a conhecer a realidade. E são próprios apenas ao jornalismo.


Como obter o máximo de objetividade e isenção em jornalismo é o que pretendo discutir no meu próximo artigo. [Ali Kamel é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br]