Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Que crise é esta?

É a crise! Esta tem sido a explicação de empresários da mídia no Brasil para justificar as demissões de centenas de jornalistas nos últimos meses, além da redução de salários, corte de despesas e aumento nos preços de seus produtos, como fez recentemente a revista Época. Sem falar na ilegal venda de emissoras de rádio (as concessões são do Estado) e no fechamento de publicações, que passam a circular apenas na versão digital.

Na sexta-feira (8/5), cerca de 30 jornalistas, vestidos de preto, saíram em passeata do auditório do Sindicato da categoria em São Paulo e se dirigiram à sede do jornal Folha de S.Paulo. A manifestação, que fez parte de um ato nacional contra demissões, precarização das relações de trabalho e práticas antissindicais, aconteceu também em outras cidades. Só no primeiro trimestre de 2015, um total de 191 jornalistas foram demitidos na Grande São Paulo. Este número ultrapassa 350 se considerada, no mesmo período, a realidade da categoria em estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco.

Existe realmente no Brasil uma crise que justifique estas demissões, aumentos de preços e cortes de investimentos? A resposta é não. Análises independentes como as realizadas por organismos internacionais, como vários que integram o sistema ONU, mostram um cenário bem diferente. Nos últimos 10 anos, o país obteve avanços significativos no plano econômico e social, especialmente no que diz respeito ao combate à miséria.

O Brasil desenvolveu um mercado de massa, distribuiu renda e significativas melhorias aconteceram no que diz respeito ao acesso à educação. No plano macroeconômico houve capacidade de acumulação de reservas cambiais, além da contra tendência de endividamento externo, diferentemente do verificado em muitos países europeus, hoje mergulhados em crises sociais sem precedentes.

Avaliação semelhante tem a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) que, em nota, assinada por seu presidente, Celso Schröder, enfatizou que “há uma ação articulada de caracterização de uma crise no setor que não existe e de irresponsabilidade social quanto ao emprego dos jornalistas”. De acordo com Schröder, os balanços das empresas mostram que seu lucro é significativo. Razão pela qual, para a Fenaj, o momento é de reagir e lutar em defesa dos direitos da categoria.

Ódio à democracia

Autores tão diversos como Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) Raimundo Faoro (Os donos do poder) e Roberto Schwarz (As ideias fora do lugar) ao analisarem a conformação da elite brasileira, concordam num aspecto: aqui, as ideias liberais, tão elogiadas por estas elites, não passam de arremedos. Caso contrário, como explicar que estas mesmas elites defensoras das virtudes do capitalismo, das maravilhas da livre-concorrência e da liberdade de expressão sejam adeptas da troca de favores, das matérias pagas não caracterizadas, da calúnia, da difamação, do silenciamento de amplos setores sociais e até de chantagens? Em poucas palavras, tenham verdadeiro ódio à democracia.

E se nesse sentido os Diários Associados foram e continuam sendo emblemáticos, a mídia comercial brasileira, com seus equipamentos modernos e caros e uma estrutura produtiva bastante complexa, não consegui ainda chegar próximo do jornalismo praticado em países que tanto dizem admirar, como Estados Unidos, Inglaterra e França. Países onde existe não só uma mídia pública de peso, como os posicionamentos político-ideológicos da mídia comercial são obrigados a se colocar de forma bem mais cuidadosa e sutil. Até porque nestes países a mídia é regulada e nenhum cidadão estadunidense, inglês ou francês jamais considerou que vivem sob censura.

Mais do que nunca se mostra atual a avaliação feita por Samuel Wainer, há pelo menos cinco décadas, sobre os “barões da mídia” brasileiros. Segundo ele, uma característica destes empresários era o fato de suas empresas irem sempre mal, enquanto seus donos estavam muito bem. Nos dias atuais, as Organizações Globo, Editora Abril e Folha de S.Paulo demitem e cortam investimentos, mas seus proprietários estão entre as maiores fortunas do país. Que o digam os herdeiros de Roberto Marinho.

Quando a mesma Globo, em nome da “transparência”, informa aos leitores de Época que foi “obrigada” a aumentar o preço da assinatura da revista em função de aumentos no preço da energia elétrica e dos custos da matéria-prima importada, esquece-se de informar que durante os últimos cinco anos sonegou vultosas somas em impostos aos cofres federais (os tributos sonegados anteriormente já prescreveram). Esquece-se de, igualmente, informar que, na prática, já se vale da terceirização ao obrigar funcionários a demitirem-se e formarem empresa jurídica para escapar de recolher contribuição previdenciária, além do pagamento do FGTS, férias e 13º salário.

Por isso, a alegada crise da mídia no Brasil nada mais é do que o espelho da tentativa, por parte dos donos desta mesma mídia, de manterem os privilégios do passado. De garantirem seus lucros e repassarem para o Estado e para os trabalhadores, custos que são seus. Dito de outra forma, a alegada crise nada mais é do que o espelho da falta de credibilidade desta mídia que, há muito, perdeu (se é que algum dia teve) sintonia com os interesses da maioria da população. Até porque, dentro da própria mídia comercial, não faltam oportunidades para expansão ou mesmo novos negócios.

Graças ao desenvolvimento econômico (o país é a sétima economia do mundo) e aos programas sociais existem milhares de brasileiros com poder aquisitivo e escolaridade aguardam por veículos de comunicação que digam algo que tenha interesse para eles. A título de exemplo, um nicho que, apesar da alegada crise, não para de crescer é o da chamada imprensa popularesca.

O tabloide Super, do empresário mineiro Vittorio Medioli (ele próprio condenado a cinco anos e cinco meses de prisão por remessas ilegais de recursos ao exterior) ostenta uma tiragem diária de 272 mil exemplares, acima dos 202 mil exemplares da Folha de S.Paulo e dos 201 mil de O Globo. Detalhe: a tiragem do Super está em franca expansão.

A fórmula do Super não poderia ser mais conservadora – o velho tripé sexo, futebol e polícia. Seu sucesso de vendas prova, no entanto, que as classes C e D têm na informação e no conhecimento valores nos quais estão dispostas a investir. Investimento que, obviamente, poderia ser infinitamente melhor aproveitado por estes setores se existisse aqui uma mídia de massa comprometida com a cidadania e com o aprofundamento da democracia. Algo como um diário de centro-esquerda nos moldes do argentino Página/12.

É aí que podem entrar em cena tanto os jornalistas quanto a maioria da população brasileira e, juntos, fazerem a diferença. Como? Ao lutarem pela regulação democrática da mídia, jornalistas e os mais diversos setores sociais estarão contribuindo para viabilizar uma mídia pública de qualidade e centenas de novos empregos em todo o país. Utopia? Longe disso.

A realidade e suas possibilidades

Em quase todos os estados da federação existem TVs e rádios governamentais, que atendem pelo simpático nome de emissoras educativas. Emissoras que, entra governo, sai governo, continuam confinadas a situações melancólicas: orçamentos ínfimos, equipes insuficientes e defasadas, programação limitada e precária. A pressão dos jornalistas somada à dos diversos setores sociais pode alterar este quadro.

Pode não só garantir a quantidade e a qualidade da programação destas emissoras (com a consequente abertura de novos empregos e valorização dos existentes) como viabilizar a cadeia produtiva do audiovisual, passando a gerar empregos não só para jornalistas, como para especialistas e técnicos em rádio e televisão, atores, músicos, figurinistas, cenógrafos, engenheiros etc. Sem falar na regionalização da cultura e na ênfase ao trabalho de uma infinidade de artistas e produtores culturais. Pode, em última instância, possibilitar que esta mídia deixe de ser pautada pelos interesses dos governadores de plantão e passe a ter como foco a cidadania.

Para que ações deste tipo aconteçam é fundamental que os jornalistas, através de suas entidades, tenham clareza sobre a realidade atual e também sobre as diversas possibilidades para modificá-la. Vários estados, a exemplo de Minas Gerais, possuem em suas constituições conselhos de comunicação social que nunca saíram do papel. Que tal lutar para que sejam implementados imediatamente? Que tal lutar para que o jornalista, a exemplo dos médicos e advogados, tenha também seu Conselho Federal? Que tal lutar para que no Brasil a urgente regulação democrática da mídia abra espaço para novas publicações, reforce as emissoras de rádio e TVs comunitárias já existentes e facilite o surgimento de novas? Nada disso cairá do céu e muito menos terá os patrões como aliados.

Não resta dúvida que a mistificação criada pelos empresários da mídia em torno de uma crise que não existe deve e precisa ser denunciada. Mas só isto não basta. Os jornalistas precisam ter clareza para distinguir entre a crise de credibilidade da mídia e a mudança de paradigma que o próprio jornalismo, enquanto área de conhecimento e profissão, experimenta.

A facilidade de acesso à informação propiciada pelas novas tecnologias, sobretudo a internet e as redes sociais, ao contrário do que determinada literatura tenta difundir, não trará como consequência o fim do jornalismo e muito menos da atividade jornalística. Da mesma forma que o conhecimento mais acessível e abundante sobre medicina não representou o fim dos médicos e das profissões ligadas à saúde. Nas sociedades pós-industriais, mais do que nunca, o conhecimento e as informações serão valorizados e, os saberes específicos necessários.

O jornalista é imprescindível

Alguns podem argumentar que médicos, professores, engenheiros e advogados possuem conhecimentos específicos e que o mesmo não acontece com os jornalistas. Não é verdade. O jornalismo possui teoria, história, técnica, ética e estética e o seu fazer envolve um sofisticado trabalho com a linguagem e com técnicas de apuração e edição nos mais diversos suportes. O jornalismo é uma área do conhecimento cujo profissional, em última instância, é uma espécie de facilitador, auditor e garantidor das informações que divulga, necessárias e imprescindíveis ao funcionamento e ao desejável avanço da própria democracia.

Na complexa sociedade contemporânea, ninguém – seja dona de casa, trabalhador ou empresário – tem tempo e competência para acompanhar fatos os mais diversos e conseguir contextualizá-los com a rapidez e precisão necessárias, aconteçam eles no centro da cidade ou do outro lado do planeta. Essa, no entanto, é a tarefa e a competência do jornalista e a necessidade de quem as exerça tende a aumentar a cada dia.

Sem dúvida os suportes para a divulgação das informações podem e estão mudando de forma acelerada. Uma avalanche de informação, através da internet ou das redes sociais, não significará nada para a vida das pessoas e muito menos para a cidadania se não for acompanhada das devidas mediações que só o jornalista, pela especificidade de seu conhecimento, é capaz de realizar. É a falta desta adequada mediação, inclusive, que tem tornado a apreensão de muitos fatos da atualidade confusa e até distorcida.

A crise vivida pela mídia no Brasil é, portanto, uma crise dos empresários, dos patrões e do modelo de empresa que implantaram. É uma crise que atinge apenas por tabela os jornalistas na medida em que lhes rouba postos de trabalho e parcela de credibilidade, mas está longe de poder ser caracterizada como uma crise da profissão e, muito menos, desta área do conhecimento.

As faculdades e escolas de Comunicação precisam estar atentas a estes aspectos. Iludidos pela visão distorcida que a mídia tem difundido sobre o assunto, inúmeros estudantes de jornalismo mostram-se desmotivados e quase em pânico, reproduzindo de forma acrítica uma visão equivocada e que interessa apenas aos empresários do setor. Motivo pelo qual foi das mais oportunas a iniciativa da Faculdade de Comunicação da PUC-Minas ao abordar, em seu III Seminário de Pesquisa e Extensão o tema “Comunicação e Democracia no Brasil: Tecnologias, crises, oportunidades e desafios”.

Afinal, depois de conseguirem transformar o Brasil em um verdadeiro paraíso da desregulamentação – não há mais Lei de Imprensa, o Código Brasileiro de Radiodifusão está caduco e não se exige diploma específico de curso superior em Jornalismo para exercício da profissão – só falta agora os empresários tentarem convencerem os atuais e futuros profissionais que eles são dispensáveis.

Mais do que nunca o jornalismo e os jornalistas são necessários para a compreensão da realidade e da história cotidiana. Já os atuais empresários da mídia no Brasil se tornam cada vez mais prescindíveis.

***

Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este texto foi publicado no blog Estação Liberdade