Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Querido Vlado, 30 anos depois


Alberto Dines – João Batista Andrade, você dirigiu o documentário Vlado 30 anos depois. Como está a reação do público, que provavelmente não testemunhou o que aconteceu há 30 anos? Como é esse encontro de gerações? As pessoas estão sentindo o que significou?


João Batista Andrade – O que há de mais gratificante no filme é isso aí. As pessoas da minha geração se emocionam muito assistindo ao filme. Eu tenho ouvido de várias delas o seguinte: ‘Finalmente a nossa história começa a ser contada.’ Agora, o impressionante são os jovens. Eles saem completamente eletrizados pelo filme. Eu tenho conversado muito, eu vou para a porta do cinema, espero todo mundo sair, todo mundo me conhece ali e então forma aquele bolo de gente. O que eu mais escuto dos jovens é o seguinte: ‘Agora a gente começa a entender que loucura era aquilo, como se vivia naquela época.’ Então a coisa mais gratificante do filme foi ter conseguido esse diálogo com os jovens. Eu entrei no Google outro dia e procurei lá ‘Vlado 30 anos depois João Batista Andrade’, para pegar resultados só do filme. Tem lá 10 páginas de listas de sites e é tudo moçada. Eu comecei a abrir as páginas e todas estavam muito entusiasmadas com o filme.


Alberto Dines – Luiz Garcia, eu queria que você falasse um pouco sobre o seu testemunho desse trabalho com Vladimir Herzog.


Luiz Garcia – O Vlado era realmente uma pessoa de extrema sensibilidade. De todos os diretores da Visão, e era um grupo muito pequeno, todos trabalhavam na mesma sala, ele era o mais sensibilizado pelos aspectos culturais e talvez o menos político de todos. Depois de dois anos a Visão foi vendida pelo seu dono, o empresário Sérgio Farah – depois de muito tempo mantendo a publicação até heroicamente, em termos empresariais – ao engenheiro Henry Maksoud, que destruiu a revista rapidamente. Eu fui o primeiro a sair, mas logo depois todos os outros diretores saíram. O Vlado foi para a TV Cultura, outros também foram com ele, alguns foram para o Estado de S. Paulo e outros para outros jornais. Passou-se um ano e nós, no Rio (Zuenir Ventura tinha sido chefe de redação da sucursal da Visão), tivemos a notícia da morte de Vlado. Fomos imediatamente a São Paulo para acompanhar o enterro. Naqueles primeiros dias a consternação em São Paulo era uma coisa que se sentia no rosto das pessoas. A polícia tinha a versão do suicídio e talvez seja até tecnicamente possível uma pessoa se suicidar quase sentada no chão. Mas na verdade, poucos meses depois, a morte do operário Manoel Fiel Filho, exatamente no mesmo lugar e nas mesmas circunstâncias, mostrou que aquilo era apenas uma forma de execução.


Os dois episódios conjugados, a morte do Vlado e a morte desse operário, simbolicamente a morte de um intelectual e de um trabalhador, se juntaram para reforçar o processo de abertura política. Caiu o comandante do II Exército e o presidente Geisel iniciou o processo de distensão que levaria ao fim do regime militar. A morte do Vlado de certa maneira está no começo, não de todo esse processo, mas no momento em que todo esse processo começou a se acelerar.


Alberto Dines – Paulo Markun, você, com um trabalho de recuperação e, sobretudo, de reabilitação, acaba com essa história de suicídio, o que realmente era fundamental. Eu queria que você trouxesse um testemunho dessa sua luta.


Paulo Markun – A gente tem que dar crédito a quem começou essa batalha. O primeiro jornalista que tomou essa atitude foi Rodolfo Konder. No início de 1976, meses depois, teve a coragem de prestar um depoimento extrajudicial a três figuras ilibadas aqui do nosso mundo jurídico, e isso foi publicado pelo jornal Estado de S. Paulo. Nesse mesmo dia, saiu um manifesto assinado por 1.004 jornalistas, repudiando o inquérito policial militar. É um detalhe importante desse episódio que envolveu a imprensa.


O governo Geisel determinou a instauração de inquérito para provar o que era a premissa, quer dizer, estabeleceu como premissa a conclusão: Vlado tinha se suicidado, contra todas as evidências… No domingo eu estava conversando com o Alberto Goldman [deputado federal hoje no PSDB-SP, que na época era do MDB, mas representando o PCB, então na ilegalidade], que relatou ao presidente Geisel, no palácio do governo, poucos dias depois da morte do Vlado, a situação que vivia o estado de São Paulo: estavam matando gente nos porões do regime. Geisel respondeu com uma única frase: ‘Eu sei.’ No entanto, determinou que o inquérito investigasse as causas do suicídio de Vlado. Esse inquérito foi uma farsa e essa farsa, o que é pior, foi publicada em oito páginas do jornal Folha da Tarde [grupo Folha], com manchete que eu jamais vou esquecer, porque me envolvia e a todos os companheiros que estavam ali: ‘Desbaratada a gangue do nazismo vermelho.’


‘Nazismo vermelho’ era como o general Ednardo D’Ávila Melo [comandante do II Exército] classificava os comunistas que na época estavam na ilegalidade e sendo torturados e assassinados – não só o Vlado, foram 12 do Partido Comunista Brasileiro assassinados em menos de um ano. Então isso foi muito marcante. Konder foi o primeiro, Clarice Herzog entrou na luta, o Sindicato dos Jornalistas teve papel decisivo, Audálio Dantas à frente… Alberto Dines foi o primeiro jornalista a denunciar a campanha que se fazia contra a TV Cultura, antes mesmo da morte do Vlado, no seu Jornal dos Jornais, que era uma coluna na Folha de S. Paulo. Mas nem toda a imprensa agiu de maneira correta nesse episódio.


Dines – João Batista, hoje as novas gerações esqueceram o que foi o Partido Comunista, e de repente nós estamos reencontrando um pedaço de nosso passado político extremamente importante. Gostaria que você enfocasse esse aspecto.


João Batista Andrade – Fui militante do partido muito tempo antes. Entrei no fim de 1962 e fui dirigente do partido na juventude. Fui também diretor da União Estadual dos Estudantes, quando o Serra [José Serra (PSDB), prefeito de São Paulo] era presidente. Eu era diretor, e o Sérgio Motta [fundador do PSDB, ex-ministro das Comunicações do governo FHC, morto em 1995] era um dos diretores também, e era do Partido Comunista. Agora, o que é importante é que depois do golpe do Estado, é claro que o partido esfaleceu. Eu participei em 66 de um congresso do partido aqui de São Paulo, onde estavam o Prestes [Luiz Carlos Prestes, fundador do Partido Comunista Brasileiro (1898-1990)] e o Carlos Marighella [1911-1969] e eles estavam disputando a direção do partido. A corrente contra a luta armada ganhou e a corrente do Marighella perdeu, então ele criou um novo partido, a ALN (Aliança Libertadora Nacional). Eu estava no congresso e não sabia que os dois estavam lá, porque eles estavam clandestinos lá dentro.


Acho que é importante lembrar que em 1958 o partido tinha uma resolução que afirmava, primeiro, a questão nacional, isto é, não é tudo que a União Soviética falava que servia para o Brasil; segundo, a questão democrática – era uma organização nacional, tinha que levar em conta a questão nacional e levar em conta a questão democrática também, quer dizer, o partido, de uma certa forma, abriria mão daquela idéia de que ganharia o Estado, de que tomaria conta do Estado. Começou a pensar em alianças, aproximou-se de uma política italiana [do Partido Comunista Italiano, que inaugurou o chamado euromunismo], era um partido que pensava na via democrática.


Então, depois do golpe, o partido continuou com a idéia de que a luta contra a ditadura tinha que ser pela via democrática, nós tínhamos que rearticular a sociedade e que para derrotar a ditadura precisaríamos de um movimento amplo, ganhar a sociedade. Era o que nós pensávamos quando viemos para TV Cultura em 72, o Vlado, eu e o Fernando Pacheco Jordão. O Fernando não era ligado ao partido, mas o Vlado era, e eu era antigo militante, que estava desligado formalmente – eu não fazia parte do grupo de jornalistas, tinha uma ligação ‘pelo alto’ com o partido; então, a visão que a gente tinha era de derrotar politicamente a ditadura, fazê-la sair de cena. Qual era nosso papel então? Nós trabalhávamos com o jornalismo, nós tínhamos que ajudar a sociedade a repensar os temas, ajudar a sociedade a retomar a discussão de seus problemas, porque a ditadura roubou isso, censurando, proibindo, prendendo, matando, exilando, então, era importante a gente falar.


Nos documentários especiais que eu fazia, eu mostrava transportes, alimentação, miséria, favela, para a sociedade ver de novo o país em que ela vivia e enfrentar seus problemas. O partido tinha a visão de que precisava ganhar a sociedade para uma posição contra a ditadura. Isso era o Partido Comunista e foi uma idéia vencedora. Foi o que aconteceu com a sociedade: a ditadura foi encantoada. Sempre falo que Vlado é vítima da vitória dessa idéia, porque a ditadura ficou tão encantoada e o medo dos porões de enfrentar a democracia foi tanto que eles reagiram com essa violência, prendendo jornalistas e matando o Vlado.


Alberto Dines – Luiz Garcia, como você vê a polarização daquela época? A extrema-direita realmente não admitia o pensamento liberal, democrata, e colocava o Partido Comunista, que defendia a via democrática, como bandido.


Luiz Garcia – É, isso de certa maneira ajudou a que o Partido Comunista achasse essa via democrática, porque ele passou a ser um aliado necessário de grupos democráticos que não eram necessariamente comunistas. Um dos defeitos fatais na ditadura é que ela força uma união de todos os contrários. E o que aconteceu no Brasil foi isso, pois havia grupos que poderiam estar em posições inteiramente antagônicas num regime de liberdade, e que se juntavam porque a tarefa primordial era o combate ao regime militar.


Alberto Dines – Markun, como você vê o Partidão?


Paulo Markun – Eu comecei na militância estudantil com 15 anos, no movimento secundarista, em 1968. Então, vivi toda aquela época sem ligação com o Partidão porque ele na época não tinha nenhum espaço no movimento estudantil. Isso era o auge da luta armada, da idéia de que rapidamente se chegaria ao poder e se derrubaria a ditadura, e ao mesmo tempo se implantaria o socialismo e se construiria um paraíso na Terra. O que eu conto no meu livro é um pouco dessa trajetória de uma geração, que é a geração dos meus amigos, muitos dos quais foram para a luta armada, morreram ou foram torturados e presos, e outros acabaram no início dos anos 70 se rearticulando com o Partidão, que já então conseguia algum contato com a intelectualidade e com os estudantes, mantendo essa tese de que poderia atuar pela luta democrática, pela ação dos sindicatos, no partido de oposição, nas comunidades de base, nas frentes intelectuais.


E falamos de Vlado em 1975. Em 74, ocorreu a grande vitória do MDB, para a qual os candidatos do Partidão contribuíram, minoritariamente, porque era uma organização pequena, mas, de alguma forma, tinha muito trânsito na sociedade. O paradoxo do que a gente viveu é que éramos todos militantes clandestinos, mas com endereço legal, empregos, família. Então, era muito fácil desmantelar essa organização depois de um trabalho que envolveu investigação, infiltração de agentes no partido, barbaridade, tortura e violência em doses cavalares, como muitos sofreram e que destruiu de cima para baixo.


É bom lembrar que, naquela época, o Partidão era muito criticado por núcleos da esquerda – hoje, parte deles defendendo a tese das alianças e argumentando que é possível fazer com que os fins justifiquem os meios –, porque diziam que o Partidão era reformista, não queria mudar a sociedade e só queria acabar com a ditadura.


Esse foi o avanço que se fez. Vlado foi um mártir involuntário, mas não ingênuo e nem inocente. Ele era militante do Partidão e tinha escolhido o Partidão. A própria Clarice relata: como judeu, não podia ser da igreja católica. E ele achava que havia apenas duas organizações na sociedade brasileira com organização, força e competência para enfrentar a ditadura: a igreja católica e o Partidão. Ele escolheu o Partidão, mas é bom deixar claro que não se tratava de transformar a TV Cultura num antro de subversão, como preconizaram as campanhas do Cláudio Marques, do delegado Romeu Tuma, de deputados e de outros jornalistas. No caso da TV Cultura, o projeto de jornalismo que Vlado tentou implementar tinha sido aprovado pelo governo de São Paulo e ele dizia uma frase: ‘Para fazer um bom jornalismo numa emissora do governo não é preciso esquecer que a emissora é do governo, basta não ser servil’.


João Batista Andrade – Como os arquivos não foram abertos, tem-se que usar tudo o que se sabe, com a vivência da gente, para poder ter hipóteses. No filme Vlado 30 anos depois há uma hipótese: para os porões, para os militares duros, Vlado era um peixe grande. E eles precisavam inventar esse peixe grande. Queriam intrigar com o Geisel, mostrar que o governo Geisel estava tomado pelos comunistas – como Vlado, uma pessoa aberta, um intelectual fino, dirigindo uma emissora do governo do Paulo Egídio, que era o nome do Geisel em São Paulo, um liberal. Na verdade, queriam criar um problema para o Geisel, o Vlado parece que foi um achado para eles.


A segunda hipótese é com relação à própria morte. Vendo, desde que eu li o texto, o que o Vlado escreveu, eu disse: o Vlado nunca escreveria isso aqui. Aliciar? Vlado jamais escreveria ‘fui aliciado’, isso não existe. Era do jargão militar. Então, qual é a hipótese? Ele não queria falar nada e apanhou muito. Chega uma hora em que o cara não quer ceder e a saída é ‘me diz o que é para escrever que eu escrevo’. Ditaram a ele e ele, quando acabou de escrever, não quis entregar o papel e o rasgou. Aí foi submetido a uma violência brutal, provavelmente do Grancieri, que já morreu, aquele que tinha uma tatuagem no braço. Eu quase que imagino isso do Vlado, pelo que conheço dele. Essa imaginação da gente acaba servindo para as pessoas tentarem imaginar de fato o que aconteceu.


Mas é importante que os arquivos sejam abertos. Nós estamos homenageando os 30 anos da morte de um mito da vida brasileira, e por que esse medo? Os militares todos foram anistiados. Não existe processo contra eles, ninguém quer o emprego deles, não queremos tirar nada, nem persegui-los. Nós queremos saber de fato o que aconteceu e quais são as pessoas envolvidas.


Luiz Garcia – Eu acho que, em parte, a verdade histórica está sendo recuperada. Nós não podemos esquecer, por exemplo, do trabalho de investigação profundo realizado por Elio Gaspari em sua série de livros sobre o regime militar. Há provas – os livros dele provam – de que é possível recuperar grande parte, senão a essência, dos fatos daquela época. Creio que o nosso maior desafio é em relação à realidade de hoje. O jornal descobriu, aos poucos, que sua missão não era nem a de ser um serviçal do Estado, nem a de ser um agente da revolução. O jornalismo moderno se vê muito mais como um agente a serviço da sociedade. É um papel mais modesto, menos heróico, mas certamente de importância extraordinária. Não há nada mais importante, nesse mundo extremamente complexo em que vivemos, do que levar a sociedade, na medida do possível, às formas de entender o que se passa. A recuperação da história faz parte, é claro, do entendimento do presente.


Alberto Dines – Markun, o Estadão de domingo mencionou a existência de um ‘setor judeu’ nas investigações dos órgãos de repressão naquela época. Conversei com o Carlos Marchi, autor da matéria, e ele disse não ter muitos dados além dos que citou, mas na época senti essa tendência. O que você acha?


Paulo Markun – Eu acho que existe. Complementando o que o João Batista Andrade mencionou, essa hipótese bastante possível de que o Vlado tenha rasgado o bilhete e o torturador tenha se indignado e o matado. Há um detalhe: esse tipo de coisa de escrever de próprio punho, que a gente era obrigado a fazer, normalmente acontecia quando você já estava sendo levado para o Dops. E não era um pequeno bilhete, era uma grande obra – digamos assim – com mais de 30 perguntas, uma coisa ridícula que eu reproduzo alguns trechos no livro.


Então existe a possibilidade de que o Vlado estivesse sendo preparado para ser solto e que o bilhete fosse a determinação. Mas há uma outra hipótese que eu levanto no livro: frei Chico, irmão do Lula, que na época era militante do Partido Comunista – o Lula já era presidente do sindicato, mas não tinha ligação alguma com o Partido Comunista, nem tinha o destaque que teria depois como líder sindical –, apanhou vários dias seguidos para confessar algo que era absoluta mentira: que o Lula teria sido portador de uma carta do Partido Comunista a Luiz Carlos Prestes, que estava em Moscou. Lula tinha ido ao Japão, não tinha nada a ver, mas os torturadores queriam incriminar Prestes e Lula, nessa ocasião, em 1975. Para isso, frei Chico apanhou dias seguidos.


Portanto, não há como descartar a possibilidade de que o Vlado tinha apanhado mais para admitir o que escreve no bilhete, para, por exemplo, incriminar José Mindlin, que era o secretário da Cultura de São Paulo, da comunidade judaica, como o próprio Vlado, e que incriminaria Paulo Egídio Martins. Na conversa surrealista que os cinco jornalistas – Rodolfo Konder, Anthony Cristo, Duque Estrada, Frederico Pessoa e eu – com os torturadores e o chefe do DOI-CODI depois da morte do Vlado. Eles argumentaram que o Partido Comunista, ao contrário do que a gente sabia, não era dirigido por Luis Carlos Prestes, mas por figuras acima de qualquer suspeita, como um general, um cardeal e um governador. Então, que havia a intenção de mover Paulo Egídio e que a porta de entrada era o Mindlin, isso está provado pela campanha de imprensa que o próprio Dines iniciou denúncia ainda no início de outubro. E queriam dizer que a TV Cultura era um antro de subversão. Eu não descarto a possibilidade de ter havido esse outro caminho e acho que é necessário investigar sim. O ministro Nilmário Miranda, que cuidava da área de direitos humanos do governo Lula e que hoje já não cuida mais, me disse que, nos arquivos do SNI não há documentos do DOI-CODI. No entanto, eu pedi a ele que me fornecesse os dados relativos ao caso do Vlado e não consegui. E mais: na pesquisa que fizemos nos arquivos restritos do DOPS – que estão preservados no arquivo do Estado – eu localizei uma reunião da comunidade de informações que, no dia 10 de setembro, registra a declaração do então agregado Romeu Tuma, dizendo que, na TV Cultura, havia uma campanha contra as instituições comandadas pelo ‘notório’ – não é exatamente essa a expressão – pelo ‘comprometido’ jornalista Vladimir Herzog. Então havia isso e não há como descartar a possibilidade de que algum tipo de anti-semitismo estivesse presente neste processo.’


João Batista Andrade – No filme, Mindlin conta o que o Paulo Egídio disse a ele quando ele tentou sair logo após a morte do Vlado: ‘Olha, eles pegaram o Vlado para te pegar, te pegariam para me pegar e me pegariam para pegar o Geisel’. O Paulo Egídio mostra essa escala de comprometimento.


Luiz Garcia – Eu acho que a gente deve colocar tudo em perspectiva e não esquecer do episódio da morte do Manoel Fiel Filho, que não era jornalista e não era judeu, era um simples operário. Só quando ele morreu, ou seja, só quando morre mais um depois de o Geisel ter dado ordens explícitas de que ninguém mais deveria morrer no DOI-Codi, é que se dá a intervenção e que o esquema todo é desfeito. Ao lembrar a memória do Vlado, não devemos esquecer a de Manoel. E há até um simbolismo no fato de que as principais vítimas desse episódio tinham sido um jornalista e um operário.


Paulo Markun – Os livros de Elio Gaspari demonstram claramente o quanto incomodou ao Geisel o fato de não terem cumprido uma ordem dele, mais do que o fato de que se torturava ou não, de que se matava ou não. Os diálogos que o Elio Gaspari transcreve, que esclarecem esse processo, estão claros. Para o Geisel, não havia problema que matassem, desde que não deixassem vestígio. Eu acho que também não podemos ignorar a pressão que significou a morte do Vlado e que não se repetiu em outras porque o Sindicado dos Metalúrgicos de São Paulo não era lá tão entusiasmado na luta democrática quanto o dos jornalistas nesse sentido de pressionar a ditadura.


João Batista Andrade – Eu filmei em 1979 a greve do ABC, para o filme Greve. Os operários, naquele momento, não queriam saber do resto da sociedade. Por exemplo, na assembléia em que foi lido o documento de apoio da sociedade civil ao movimento, foi a maior dificuldade para ler porque as pessoas não queriam ouvir aquilo. E era uma coisa importantíssima, eram dezenas de entidades da sociedade civil apoiando a greve. Então, a tendência do movimento operário era mais corporativa, mais fechada. Era fundamental porque mexia no bolso e no arrocho salarial, mas a consciência política da questão democrática não era tão grande. Era maior na área do jornalismo.


Paulo Markun – Só pra lembrar, o sindicato que eu menciono era o de São Paulo cujo presidente era o Joaquim de Souza Andrade, o Joaquimzão. O Manoel Fiel Filho era filiado a esse sindicado. Houve uma missa que tinha menos de 200 pessoas na Igreja do Carmo. Nós, os jornalistas e os estudantes, não nós mobilizamos para ir lá e sermos solidários ao Manoel Fiel Filho.


Luiz Garcia – Evidentemente é uma questão de diferentes índices de politização e é extremamente curioso: com a menor de politização do movimento sindical, é a morte do sindicalista que causa a queda do general Ednardo. Ou seja, paralelamente a tudo aquilo que acontecia em São Paulo, havia uma luta pelo poder na cúpula militar. E os dois episódios, a morte do Vlado e a morte do Manoel Filho em circunstâncias muito parecidas, mas com motivações e backgrounds totalmente diferentes, são partes importantíssimas do processo de abertura que se segue. Não diminui, nem altera em nada as dimensões do sacrifício de cada um deles, mas do ponto de vista histórico-político, eu acho que são dois episódios fundamentais do processo que vai levar ao fim do regime militar. O regime militar começa a acabar quando um general é demitido porque torturou, mesmo que isso seja feito apenas porque ele foi insubordinado, não porque ele tinha cometido uma crueldade.


João Batista Andrade – Eu, de certa forma, consigo até estar feliz nesse momento. Feliz por ter feito um filme que era uma espécie de uma dívida talvez comigo mesmo, com o Vlado e com a minha geração e por estar participando de tantos eventos para rememorar o Vlado. Eu queria lembrar um episódio com o próprio Vlado, para vermos o cuidado que temos que tomar: quando acabou a Guerra do Vietnã, nós resolvemos fazer no Hora da Notícia um programa sobre a guerra. Combinamos que ele faria a história da guerra e eu iria para a rua ver o que as pessoas sabiam da guerra. As pessoas não sabiam quase nada. Sabiam de eventos, mas não sabiam por que tinha acontecido a guerra, quais as forças e os interesses envolvidos. O programa foi costurado pelo Vlado com a minha filmagem e a história contada por ele com as imagens da Visnews. Então, esse é o risco que corremos: de a imprensa não conseguir transmitir à população o que é essencial em cada momento.


Luiz Garcia – Eu primeiro queria agradecer a oportunidade de participar de um programa em homenagem ao Vlado. Nós nunca fomos amigos íntimos, mas trabalhamos um ao lado do outro na mesma sala durante dois anos, tentando fazer uma revista decente que era a Visão daquela época. Em grande parte, o que ela teve de bom deveu-se ao esforço de pessoas como Vlado e como Zuenir Ventura no Rio, principalmente na área da cultura. O Vlado foi, claro, uma vítima de um regime militar naquilo que ele tinha de mais brutal e mais inconsciente, porque não há lógica alguma na morte do Vlado como instrumento de sobrevivência do regime militar. Na verdade, a morte do Vlado é o primeiro ato de uma seqüência que vai levar à derrocada do regime militar. Tenho certeza de que ele teria satisfação de saber que assim se passou. Muito obrigado.


Paulo Markun – Eu acho que se o Vlado estivesse hoje entre a gente, estaria reclamando muito e fazendo. O Vlado era dessa turma dos que fazem, isso faz a diferença. Ele, em nenhum momento, entregou os pontos. As cartas que o Fernando Pacheco Jordão revela no livro dele, Dossiê Herzog, que foi reeditado agora (um belo trabalho, aliás), mostram isso: que já em 1968 em Londres o Vlado queria voltar ao Brasil para fazer televisão educativa, para falar para muita gente o que interessava a muita gente. Ele dizia que a arte (eu tenho certeza de que estendia isso ao jornalismo) tinha que servir à coletividade. Essa é uma tese importante de a gente manter, acho que o jornalismo tem que ter este compromisso, acima do mercado, acima das contingências da profissão, acima dos interesses econômicos das empresas. Tem que servir à coletividade de alguma maneira, senão ela não vai ser outra coisa na vida. Vlado nunca quis ser outra coisa a não ser um intelectual, cineasta, um jornalista. Um ser político que por causa disso acabou morrendo. E virou uma vítima, um mártir voluntário num processo que não terminou. E eu espero que a gente continue brigando.