Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sem contexto e sem perspectiva

O título desta nota poderia ser dado a uma seção fixa deste Observatório da Imprensa. Soa como má técnica dar a alguns casos particulares um nome que se aplica a parte considerável do que é publicado ou transmitido diariamente: notícias descontextualizadas e rasas.

Abordemos dois assuntos que deveriam ter merecido um mínimo de contextualização e de perspectiva temporal, para não dizer histórica, termo que talvez assuste.

O lixo resiste

O metano no subsolo de vastos terrenos da Zona Norte paulistana é um deles. Por certo existem muitas facetas a comentar, como a diferença de tratamento entre grande comércio (surgiu logo uma solução emergencial) e pobres moradores (a única saída seria mandá-los para algum tipo de acampamento), ou o descompromisso de pedidos de promotores e de sentenças judiciais com o mais elementar reconhecimento da realidade dos fatos. Ou, talvez o lado mais relevante, o que acontecerá com cidades e campos enquanto não houver soluções avançadas para o tratamento de lixo.

O episódio também mostra que está caducando o conceito de que "sentença judicial não se discute, cumpre-se". Cumpre-se, sim, se não houver recurso possível. Mas não discutir é aceitar que um dos poderes da República, o Judiciário, está acima do discernimento e da avaliação dos cidadãos. As consequências políticas disso decretariam a impossibilidade de se viver em regime democrático. Os cidadãos afetados discutiram. Mais do que isso: disseram que não cumpririam a sentença de primeira instância, depois revogada.

Deveres da Prefeitura

Na direção oposta, quem aceitou a ideia de que não é possível transferir em curto prazo três mil e tantas pessoas de um local apenas deu espaço para a retórica da indiferença social e humana.

Quando há risco de acidente, não importa qual seja sua gravidade potencial, é claro que a Prefeitura tem a obrigação de fazer o que estiver ao seu alcance, e ao de voluntários, se necessário, para socorrer os ameaçados. A operação poderia parar a cidade, se fosse o caso, mas teria que ser feita.

Winston Churchill conta em A Segunda Guerra Mundial que noite após noite entre 10 mil e 20 mil pessoas ficavam desabrigadas em Londres devido aos bombardeios alemães em 1940. E a capital britânica não parava. Churchill acrescenta: quase um milhão de pessoas tinham que ser transportadas entre a casa e o trabalho cada manhã e cada noite.

Segredos de município

É covardia comparar São Paulo com Londres. Em Londres, por exemplo, nenhuma autoridade diria impunemente que não consegue encontrar os registros topográficos e cartográficos de quarenta ou cinquenta anos passados.

No Brasil, destruir, perder ou esconder documentos faz parte da práxis do serviço público: há muito a ocultar. Por isso a Lei Geral de Acesso à Informação, em tramitação no Senado, enfrentará, depois de aprovada, uma batalha incomparavelmente mais dura do que a da tramitação legislativa. Mas essa, como diz o excelente documentarista Charles Gavin, já é uma outra história.

 Voltemos ao explosivo gás metano produzido pelo antigo lixão.

Quanta oportunidade perdida de entender e explicar o desenvolvimento da maior e mais dinâmica cidade brasileira. De informar que 4 mil dos 5,6 mil municípios brasileiros usam lixões.

“Arqueologia” da cidade

Nos dois principais jornais paulistanos, a Folha de S.Paulo e o Estado de S.Paulo, migalhas de informação vão pingando no noticiário cotidiano. Primeiro, que a área tinha sido usada como aterro de lixo até 1975 (e não se publicou uma foto desse tempo!; onde andam os arquivos?). Desde quando? Primeiro se escreveu que fora desde 1960. Depois, desde 1950.

Mais um dia e fica-se sabendo que nos anos 1940 havia ali a cava de uma mineração de areia. O conta-gotas continua funcionando. No Estado (12/10):

“No passado, todas essas áreas eram grandes lagoas ao lado do Tietê, que afloraram com a retificação do rio. O trecho mais sinuoso do leito ficava justamente entre a Vila Maria e a Freguesia do Ó – mais de 3 milhões de m2 foram aterrados nesses seis quilômetros”.

A ausência de planejamento da cidade – cuja Prefeitura se dobra sistematicamente aos interesses da construção civil, do comércio, de permissionários de transporte público, e emergencialmente a acidentes, calamidades, epidemias – resulta em amargas ironias.

O brilhante historiador da Pauliceia Ernani Silva Bruno escreveu no volume III de História e Tradições da Cidade de São Paulo (1953):

“Um dos fatos capitais na história recente da cidade, no capítulo do saneamento, é o que se refere à retificação do Tietê, empreendimento de que decorre, como é evidente, a salubridade das zonas ribeirinhas, permitindo recuperar-se ao domínio do pântano uma área considerável”.

A retificação do Tietê representou o saneamento de uma área próxima do Centro (Moema, por exemplo, é cortada pelo mesmo raio com centro na Praça da Sé). Mas até 1975 essa área era considerada tão distante que foi usada para despejar lixo, prática altamente poluidora.

Rede viária cresceu 673%

O episódio poderia ter servido para ilustrar e analisar a velocidade do processo de urbanização paulistano. Em 1970, os mapas do Guia Mapograph continham 19 mil logradouros localizados em São Paulo e em 38 municípios vizinhos. Em 2007, o guia já havia ultrapassado a marca de 128 mil logradouros.  Crescimento de 673% em 37 anos.

Desenhos que mostram a evolução da mancha urbana paulistana entre 1905 e 2005, tendo o Tietê como referencial, podem ser vistos nos slides 4 a 8 da apresentação Plano Diretor de Macrodrenagem da Bacia do Alto Tietê.

Administração é política

Até as edições de quarta-feira (12/10), nenhum morador antigo, servidor público ou profissional que tenha testemunhado sucessivas etapas da ocupação da várzea do Tietê naquele trecho havia sido ouvido. As notícias começavam e terminavam no plano mais imediato do fecha-não-fecha, desaloja-não-desaloja.

Outra dimensão perdida foi a da política. Esparsamente apareceram os nomes de Reynaldo de Barros, o prefeito (nomeado) da época em que foi autorizada a construção do shopping, e Paulo Maluf (nessa ocasião, eleito), o homem do Cingapura.

Colada à política haveria a questão da corrupção putativa: teria rolado uma graninha na época da aprovação dos projetos? Chi lo sà?

O Machado da Caixa

Outro episódio jornalisticamente pouco explorado foi o do anúncio, tirado do ar após protestos, em que um ator branco encarnou Machado de Assis.

Quem foram os estafermos que, na agência e no marketing de seu cliente, a Caixa Econômica Federal, aprovaram essa lambança fenomenal?

Como é o processo de produção de um anúncio publicitário? O público teria uma boa oportunidade para saber mais a esse respeito.

A vertente mais significativa para analisar o episódio também ficou inexplícita. É a questão do negro nas cabeças (e nas relações sociais) brasileiras.

Marketing, ideologia ou desleixo?

Teria alguém preferido um ator branco porque os clientes mais abonados da Caixa são ou pretendem ser, sociologicamente falando, brancos? O que estava no briefing recebido pela agência?

Ou na cabeça do publicitário não cabia (por ignorância ou por preconceito) a ideia de que Machado de Assis pudesse não ser branco? É a hipótese de Ivan Lessa (“O branco, o afro-brasileiro e o mulato”). Do nome da agência, BorghiErh/Lowe, Lessa depreende que é estrangeira e por isso ignora os dados culturais. Mas a agência é brasileira.

Talvez a causa tenha sido fortuita, como é frequente. Especulou-se a respeito do urso que aparece no Anjo Exterminador, de Buñuel, até que em suas memórias (Meu último suspiro), escritas por Jean-Claude Carrière, o cineasta explicou: era o animal que o diretor do zoológico da Cidade do México podia emprestar.

Fortuito ou deliberado, o branqueamento de Machado de Assis foi servido pelos jornais como fast-food, quando tinha tudo para ser um banquete.