Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Telejornal subestima os telespectadores

Quem, como este observador, foi obrigado a (ou optou deliberadamente por) inteirar-se através do canal a cabo Globo News dos confrontos entre policiais e traficantes nos morros cariocas – que culminaram com o abate de um helicóptero –, defrontou-se com um jornalismo quase oficioso, majoritariamente baseado em uma única fonte – os órgãos de ‘segurança pública’ do Rio de Janeiro –, o que subestima a inteligência do telespectador.


Claro está que as informações concernentes à ‘guerra ao tráfico’ no Rio de Janeiro sofrem de um problema estrutural que não se restringe ao jornalismo global e seria de difícil solução em tempos normais, mais amenos, tornando-se quase incontornável sob os ânimos acirrados do presente: a premissa básica jornalística de que se deve ouvir – e publicar também – a versão do outro lado é ignorada ante a constatação de que este é composto de bandidos. Há como resolver tal dilema?


Longe se vai o tempo em que o repórter policial se destacava justamente por trafegar, com igual desenvoltura, pelas delegacias e pelo submundo do crime, utilizando-se da informação amealhada como moeda de troca com um e outro universo, revelando ao seu público detalhes e antecipando estratégias de confronto entre eles. Este personagem mítico, iconizado na própria Rede Globo pelo repórter Waldomiro Pena, vivido com garra por Hugo Carvana (e cantado em verso e prosa pelo então chamado Jorge Ben) no seriado Plantão de Polícia, pertence definitivamente ao passado.


Morador é como um não-cidadão


Hoje em dia, na improvável hipótese de o jornalismo da Globo querer empregar tais estratégias investigativas, correria o risco de ser enquadrado na figura legal da ‘associação para o tráfico de drogas’ – excrescência jurídica que serve para reprimir qualquer manifestação das classes periféricas e poderia muito bem, se fosse o caso, servir também para calar a imprensa.


Mas os problemas da cobertura concernente à segurança pública carioca vão muito além dessa praticamente incontornável distorção da premissa de ‘ouvir o outro lado’, evidenciando algumas deficiências inatas a esta: os amplos contingentes populacionais que, não pertencendo à ‘bandidagem’, se veem em meio ao fogo cruzado entre polícia e traficantes são mais uma prova de que às vezes não se limitam a dois os lados a serem ouvidos.


E nesse quesito a cobertura oferecida pela Globo News revela mais uma vez sua tendenciosa fragilidade: não que os moradores do morro não se fizessem presentes, nas imagens, correndo assustados das eventuais balas perdidas; o que não lhes é concedido é voz. Ninguém que estivesse no morro ou se apresentasse como morador de lá foi ouvido nas edições do jornalístico Em Cima da Hora apresentadas entre 7 e 9 horas da manhã e na edição do meio-dia do domingo (18/10) para algo mais do que afirmar o medo das balas perdidas. Para o jornalismo global, é como se ele fosse um não-cidadão, sem direito ou capacidade analítica para conjeturar sobre o que o aflige.


Revanche ‘compreensível’


Ao contrário da espinhosa questão de ouvir ou não o outro lado quando este é um criminoso, estamos aqui diante de um problema bem mais simples, de fácil solução se a Globo se prestasse a produzir um jornalismo um pouco mais democrático e – para utilizar termos que a emissora tanto gosta de empregar – que promova a cidadania. Ainda que, num ato entre o zelo e o preconceito, seus repórteres não fossem instruídos a ouvir qualquer morador do morro, têm à sua disposição uma série de organizações civis e de ONGs que atuam nos morros cariocas, algumas delas capazes de produzir análises bem mais complexas e sofisticadas do confronto ora em questão do que a simplificação ‘mocinhos versus bandidos’ oferecida pela Globo News.


Um terceiro aspecto problemático da cobertura do episódio pela Globo News no período citado vem da escolha do indefectível expert chamado para comentá-lo. No domingo, a honra coube ao sociólogo Gláucio Soares, que, enquanto tratava o telespectador como uma criança, chamando a atenção para aspectos que, segundo ele, este não se daria conta, dizia acreditar ser ‘compreensível’ a revanche corporativista da polícia que já produzira duas mortes no próprio domingo.


Visão fundamentalista da questão


O mínimo a esperar de um intelectual (ainda que ‘à sombra do poder’, para utilizar a classificação proposta por Carlos Nelson Coutinho), notadamente em questões de segurança pública, é que ele invoque os pressupostos da razão, do tecnicismo e do equilíbrio, sobretudo em uma situação de extrema tensão e revolta; quando ele é leniente com a vendetta coletiva de forças públicas armadas, não apenas se esvai de sua função mas, no caso, incita à barbárie, à qual deveria se opor.


É preciso uma dose enorme de ingenuidade para deixar de notar que a escolha dos experts que se sentam à bancada da Globo News obedece a um filtro ideológico rigoroso, acabando por funcionar como uma ferramenta editorial das mais eficientes. Isso não justifica, no entanto, que o principal canal a cabo de jornalismo do país negligencie sistematicamente o conhecimento sobre segurança pública e criminologia produzido por pelo menos cinco institutos de alto nível em nome da manutenção de sua visão fundamentalista da questão, visão esta que, como instrumento de manipulação da opinião pública, acaba servindo a seus interesses políticos no estado e na cidade.

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Jornalista, cineasta e doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog