Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Tolerância zero com a editorialização

Na sua mais recente coluna dominical, o ombudsman da Folha de S.Paulo, Marcelo Beraba, criticou ‘o tratamento diferenciado’ que o jornal dá aos candidatos a prefeito de São Paulo. Ele acha que a Folha não vem buscando ‘o máximo de equilíbrio’ possível na cobertura da campanha.

As observações – e os números – de Beraba reforçam a percepção deste leitor de que a editorialização do noticiário na imprensa diária brasileira (nas revistas semanais, nem falar) está indo além do aceitável.

É uma percepção puramente empírica. Não tem lastro em nenhuma pesquisa sistemática. Mas logo depois de ter se escrito aqui que a cobertura dada ao projeto do Conselho Federal de Jornalismo era facciosa, dando mais espaço e ênfase aos seus críticos do que aos seus defensores, um levantamento quantitativo confirmou a impressão.

O jornalista e escritor Renato Pompeu, que se gabava de ser ‘louco de carteirinha’, observou certa vez que ‘ninguém pira para a esquerda’. Com isso ele queria ironizar eventuais explicações psicológicas que sugeriam uma atitude de leniência do pessoal de esquerda em relação a jornalistas que se distanciavam da sinistra e ato contínuo tomavam posições de destra.

Dá para fazer uma analogia com a mão única das matérias facciosas. Elas sempre – ou na esmagadora maioria dos casos, se se preferir – pendem para o lado do patrão. ‘Ninguém distorce para a esquerda’, diria Renatão. Por isso, o termo editorialização parece mais apropriado do que os genéricos desequilíbrio ou parcialidade.

Textos negativos

É a velha história: ou as coisas saem do jeito que o patrão gosta porque ele tomou a iniciativa de orientar a cúpula da redação – ou, o que é pior e talvez mais freqüente hoje em dia – editores e mesmo repórteres se antecipam, moldando o noticiário ao gosto daquele de quem dependem para o leitinho das crianças.

Toda a atenção que a crítica de mídia der a essas rasteiras na ética do ofício será bem-vinda. Idealmente, uma cortina de ferro deveria separar a redação do gabinete do publisher, tanto quanto a que precisa existir entre o comercial e o editorial.

Se ferro for pedir demais, então qualquer material que reduza ao mínimo o risco de promiscuidade entre os interesses, crenças e idiossincrasias patronais da operação jornalística – da pauta ao produto final.

Houve tempo no Brasil em que ser ‘a voz do dono’ era tido pela maioria dos profissionais como nada menos do que uma fatalidade, algo que vinha junto com o cheque no fim do mês. Isso decerto mudou – mas não tanto quanto poderia (para não dizer deveria).

Pode parecer irrealista, no mínimo, querer que os jornalistas em condições de fazê-lo se batam pela autonomia das redações, quando nem mesmo eles conseguem se defender dos freqüentes rasantes do passaralho. Mas se o recomendável é a prudência e a mansidão, suspenda-se do léxico jornalístico a palavra ética.

Não se está cometendo a generalização de afirmar que na imprensa brasileira, hoje, a notícia – aquilo que se escolheu publicar e da forma como se publica – é uma continuação do editorial por outros meios. Bem feitas as contas, é possível que se conclua que a maioria das matérias, seja qual for a sua qualidade, não é tendenciosa.

Mas uma matéria tendenciosa já é uma matéria demais. A tolerância do jornalista que não teme o espelho à editorialização do noticiário só pode ser uma: zero.

Isto posto, alguns números e exemplos, partindo do texto de Beraba.

Com base em levantamentos do Laboratório Doxa de pesquisas em comunicação política e opinião pública, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), ele informa que a Folha tem publicado mais textos negativos, do que neutros ou positivos, em relação à prefeita paulistana Marta Suplicy.

‘Desde que começou a avaliação, em 29 de abril, em apenas duas quinzenas o noticiário sobre Marta foi mais positivo do que negativo’, escreve Beraba. O contrário acontece com a cobertura do candidato José Serra – embora em ambos os casos as porcentagens não cheguem a arrepiar.

Já no Estado, ainda segundo o Doxa, a barra é muito mais pesada para a prefeita recandidata. Na última quinzena, a sua administração mereceu 20 textos negativos para cada positivo. Em relação à sua candidatura, os textos negativos prevaleceram à razão de 1,6 por 1. ‘E Serra, no mesmo período, tinha 48% de textos positivos contra 13% de negativos’, informa o ombudsman.

Opinião disfarçada

Comparem-se agora títulos de ambos os jornais em relação a dois assuntos quentes da semana passada – a campanha do Planalto por mais patriotismo e os conflitos comerciais entre Brasil e Argentina – para ver como o segundo tende (sem trocadilho) para a editorialização.

Folha (8/9): ‘Após convocação do governo, desfile reúne público recorde’ (com o antetítulo ‘Comemoração do 7 de Setembro em Brasília é vista por 60 mil’).

Estado (8/9): ‘Planalto põe ufanismo para desfilar em Brasília’ (com o subtítulo ‘Planejado por Duda Mendonça, Dia da Pátria virou espetáculo grandioso e triunfalista’).

Folha (9/9): ‘Lavagna chega para tentar mudar relações’ (com o antetítulo ‘Ministro argentino traz lista ambiciosa de reivindicações; Kirchner confirma que não cumprirá prazo do setor automotivo’).

Estado (9/9): ‘Mais um golpe argentino: agora são os carros’ (com o subtítulo ‘Em anúncio surpresa, Kirchner diz que país não vai liberar comércio automotivo com o Brasil’).

Folha (10/9): ‘Brasil estuda regra em favor da Argentina’ (com o antetítulo ‘Governo está disposto a modificar forma de financiamento do BNDES para beneficiar vizinhos, diz Lavagna’).

Estado (10/9): ‘Panos quentes e promessas na visita de Lavagna’ (com o subtítulo ‘Brasil dá sinais ao ministro argentino de que fará concessões para preservar o Mercosul’).

Outra face do problema está em certos comentários assinados. Na segunda-feira, 13, o presidente do PT, José Genoíno, publicou na Folha o artigo ‘Colunismo político e julgamento moral’. Não se vai entrar aqui no mérito do motivo do texto – um artigo do jornalista Fernando de Barros e Silva, da mesma Folha, publicado em 31/8.

O texto de Genoíno é oportuno porque algumas colunas políticas levam a perguntar por que não saíram sob a forma de editoriais, tamanha a sua carga valorativa, a abundância de adjetivos e advérbios, em detrimento da função específica dessas colunas, como diz Genoíno com razão: ‘Produzir análises políticas capazes de oferecer um entendimento adequado dos acontecimentos políticos ao leitor’. Era o que fazia Carlos Castello Branco, o Castelinho, o melhor colunista político brasileiro do seu (longo) tempo.

Muitas vezes não é fácil separar as coisas. Mas a ênfase nos juízos de valor é própria dos editoriais e aceitável nos artigos das páginas Op-Ed. Nas colunas (políticas, econômicas, esportivas), a análise dos assuntos do dia e o aporte de fatos novos devem predominar sobre o pensamento dos signatários – sem excluir a crítica.

O que não se pode é vender opinião disfarçada de notícia ou de análise. É elementar assim.

[Texto fechado às 14h13 de 13/9]