Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Torturador é nome de rua

Estava participando do programa Intersom Debates, da Rádio Intersom, em São Carlos (SP), na companhia de José Edson de Toledo Piza, mais conhecido pelo apelido de Juquita, e do também radialista Alberto Santos, quando o assunto veio outra vez à tona. Era a manhã de sexta-feira (8/2).

Sérgio Fernando Paranhos Fleury, nascido em Niterói (RJ), dá nome a uma rua de São Carlos (SP). O município presta sinistra homenagem ao homem que comandou as torturas mais cruéis do período pós-68, quando a chamada Revolução de 1964 radicalizou para enfrentar a luta armada.

Em 2002, a antiga sede do Dops de São Paulo, que ele comandou, foi transformada em museu, onde foi instalado o Memorial da Liberdade. O edifício foi construído em 1914 e, antes de ser sede do Dops, de 1935 a 1983, foi ocupado pelos armazéns da São Paulo Railway Company.

Os presos políticos eram obrigados a tortura adicional: assistir a sessões de tortura de companheiros de cárcere e às vezes de cela.

Afogado em Ilhabela

‘‘Se alguém abaixasse a cabeça diante de um preso ensangüentado, o delegado Fleury nos segurava pelo rosto e nos forçava a olhar’’, relatou a ex-presa política Neide Regina Cousin Barriguelli.

Sérgio Fernando Paranhos Fleury morreu sem pagar por seus crimes, apesar de ter sido indiciadoem vários processos. Para salvar a pele dele, foi criada a Lei 5941, mais conhecida como Lei Fleury.

É verdade que este diploma legal passou a proteger também todos aqueles que, tendo bons antecentes, caem nas malhas da lei pela primeira vez. Dependendo do que fizeram, passam a gozar os benefícios da sursis, palavra latina, do antigo direito romano, que, depois de passar pelo francês, ganhou o significado de suspensão da pena, em domíno conexo com o verbo surseoir, suspender, dispensar.

A morte de Fleury foi uma grande surpresa para todo o Brasil. Ele morreu afogado no dia 1º de maio de 1979, em Ilhabela, no litoral paulista, depois de cair do iate onde estava. Faria 46 anos dali a 18 dias. Nos obituários de então, foi lembrado o seu papel de torturador e de líder do Esquadrão da Morte. E também a destacada atuação que teve na prisão dos estudantes no famoso congresso de Ibiúna e na morte de Carlos Marighella.

Sinistra lembrança

O escritor Carlos Heitor Cony foi encarregado de entrevistá-lo quando o romancista estava no batente do jornalismo e Sérgio Fernando Paranhos Fleury comandava o Dops. Escreveu Cony: ‘Ele torturava pessoalmente, matava pessoalmente e eu fui fazer uma entrevista com ele. Me recebeu com uma metralhadora em cima da mesa.’

Nesse dia, Fleury, que matara tantos, declarou ser a favor da pena de morte para todos os crimes de homicídio. Surpresa seria se ele fosse contra!

Mas o delegado fez uma estranha exceção: a pena de morte não deveria atingir o crime passional, ‘porque o crime passional está além da natureza humana’.

E, coisa mais curiosa ainda, o jurista Evandro Lins e Silva, que recebeu o título de ‘advogado do século’ e foi ministro do STF, foi o primeiro a usar o conceito de vitimologia, palavra que entrou para a língua portuguesa em 1956. Na verdade ele trouxe para o português o conceito criado pelo jurista israelense Benjamim Mendelsohn, que consiste em analisar a contribruição da vítima para o crime.

Evandro Lins e Silva levantou a tese na defesa do playboy Doca Street, que matou com vários tiros a então famosa socialite mineira Ângela Diniz.

O escritor Roberto Drummond escreveu o conto ‘Isabel numa sexta-feira’. A protagonista foi inspirada em Ângela Diniz, a quem ele tinha entrevistado. Vale a pena reler este conto, principalmente depois de tudo o que houve com ela.

Na denominação de nossas ruas, dá-se algo semelhante com o que acontece nas prisões. Muitos que estão ali, não deveriam estar. E outros, que deveriam estar, não estão.

Todavia, mais grave do que qualquer omissão é esta sinistra lembrança de homenagear um torturador. No Parque Santa Marta, bairro de São Carlos, foi erguido um monumento para homenagear um são-carlense torturado por Fleury, mas esqueceram de pôr o nome da vítima.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século)